Zé vê Deus
Não se sabe como estes assuntos assombrosos de metafísica foi parar nas mãos do Zé. Pobre Zé, mal sabia ler, e vendo um texto destes. Leu soletrando. “Deus Existe?”. Leu diversas vezes. Afirmando. Pouco depois entendeu a interrogação. Já estava com cinqüenta e seis anos sem conseguir nada na vida. Sempre foi crente. Mas naquela tarde, depois daquele texto, sua fé balançou, mas não o suficiente, foi para casa ainda abalado. Seu barraco ainda cairia, estava sobre uma encosta corroída pela corrupção e pelas águas, e resistia “graças a Deus”, dizia Maria das Dores, sua esposa. Olhou pela fresta, uma das tantas que a casa tinha às vezes ele pensava que havia mais frestas do que madeira, e avistou um cavalo, que pastava nas ralas folhas de grama que sobraram depois da ultima enchente, e se indagou “porque Deus teria a imagem do homem, e não a de um cavalo?”.
“Deus com corpo de cavalo?”, indagou a mulher, enquanto tentava acender a lenha molhada para o fogo de chão, pois não ganhavam o suficiente para comprar gás, nem energia elétrica o barraco possuía, não tinham geladeira, TV, e usavam lamparina a querosene, e hoje estavam no escuro, não havia combustível. Permaneceram em silêncio como se interpretando a pergunta. Com o clarão da lua, nesta noite cheia como nunca, para abrir a velha bíblia sagrada, presente da sua mãe, Doralina, tinha ensinado, que sempre que estivesse com uma dificuldade, ou duvida, bastaria ler uma passagem. Lembrou-se do dia em que conheceu Zé, naquele tempo, seu José. Trabalhavam numa grande fabrica de massas, ele empacotador, ela telefonista. Deus era justo. Mantinha-os no trabalho, até o dia que chegou a maquina de empacotamento automático, depois foi à vez do auto-atendimento. Um após o outro, foram demitidos, nunca fizeram nada de qualificação, Deus preservaria os empregos. E agora quinze anos após, ainda estavam desempregados, sobreviviam graças as desgraças dos ricos, o lixo. Muitas vezes os restos de comida jogados fora, era tudo o que tinham, e do parco dinheiro que ganhavam, um pouco ia para a igreja, e quando passam na frente do mega prédio que os pregadores da palavra do Eterno construíram, orgulhavam-se de ter ajudado naquela obra.
Um vazio lhe toma as entranhas. “Deus com cabeça de cavalo?” Se perguntou mais uma vez, antes de deitar-se ao lado do marido no centro da casa, entre o fogão e o vaso sanitário presentes no mesmo cômodo. Roupas velhas recobrem o chão tentando amaciar o improvisado catre, que já deita pensando em não levantar.
Zé queria tanto ver Deus. Por inúmeras vezes, queria acabar com sua vida, suicídio quem sabe, mas a igreja não permitia, não era de bom grado perante aos olhos do criador atentar contra a vida de qualquer ser humano, pior ainda, seria contra si próprio. Não queria passar dessa, sem saber se realmente o outro lado era melhor do que este, ao tempo que imaginava não haver para ele, nada pior do que já estava. Ninguém se importaria com um Zé Ninguém sendo atropelado, caindo numa vala, morrendo afogado no rio ou entre tantas desgraças que podem ocorrer á um ser vivente. Muitas vezes passou mal enquanto vasculhava alguma lata de lixo no centro da cidade, e ninguém percebera. Caminhava muito para ir até o centro, mas valia a pena o lixo era mais “recheado”. Numa destas incursões ao submundo dos humanos, estava distraído fazendo seu trabalho, quando se deu conta que o homem que tentava lhe ajudar era Deus.
Nunca ninguém tentara ao menos lhe dar a mão, uma vez que cansara de desmaiar em pleno centro movimentado. Em principio ficou arredio, e se encolheu de forma fetal num canto, suando frio e com o coração palpitante. Era como se tivesse morrido. Talvez era assim que ficavam os mortos, na posição de nascimento, com um suor frio lhe cobrindo o corpo como uma placenta de lama levando-o de volta ao pó. Conferiu o coração, que batia assustado, imaginando se do outro lado ainda teria um coração batendo. E Zé vê Deus com desconfiança. Dizer que é Deus só não vale, não no Brasil, em outro país até poderia, mas aqui não. Queria ver um milagre para certificar. Deus disse que não podia estavam em publico e poderia dar na vista e esta passagem pela terra era para ser incólume.
Depois de muita insistência, e Deus dizer muitas coisas sobre sua vida, que qualquer um poderia saber, segundo ele, o Poderoso resolveu então dar uma pequena demonstração.
- Não faça nenhum alarme. Levante calça da perna esquerda.
Para seu espanto estava sã. Tinha uma ferida incurável na perna há quase dez anos. Naquele momento acreditou que estava diante do criador. Queria gritar, comemorar, mas prometera fazer silêncio. Mas Deus lhe tirou a alegria dizendo, “não vai ser por muito tempo, tua hora está chegando”.Não sabia se ria ou se chorava, estava diante do ser mais duvidado de existência e sabendo que morreria logo.
Não queria ser egoísta, milhões de pessoas querendo conhece-lo, e ele ali sozinho. Escorregou pela parede, e sentou-se no piso frio.
- Porque o mundo está desta forma, uns com tanto outros sem nada?
- O Homem o deixou assim.
- Faça alguma coisa, conserte.
- Deixei-vos fazer escolhas, agora tens o resultado.
- E a vida do outro lado, e melhor que aqui?
- Logo você descobrirá.
Queria saber de forma morreria, se um suicida é tratado diferente, mas era tarde demais.
Zé tentou acordar, mas não deu, estava morto. Antes de sumir deste plano, ele ainda pensou, não tinha certeza de nada, aliás, nunca tivera, ninguém tem, só da morte, essa sim, inevitável. Outra certeza também é que não teria nem caixão ou velas.