Abraça-me

Clara

O congresso de História já ia começar. Minha turma estava toda lá. Sentei na segunda fila e as famosas brincadeiras começaram. Bolas de papel voavam disputando espaço com aviões e copos. Na segunda bolada que levei me levantei e gritei:

- Joga a mãe!!! Levei várias boladas ao mesmo tempo e sentei-me.

Carina estava ao meu lado. Ela era minha amiga desde o começo do curso, quando no primeiro dia de aula, entrei na faculdade sem saber onde era minha turma.

- Vamos procurar juntas? Disse ela ao me ver. Daí nasceu uma grande amizade, que se estendeu até pouco tempo. Ela estava meio apreensiva com uma prova que íamos fazer. Eu sentia que ela estava preocupada e isso me preocupava também. A ideia de cursar o sexto semestre sem minha melhor amiga me aborrecia. Tentei puxar assuntos que não tinham nada haver com a aula e as respostas eram sempre em monossílabos.

Não percebi que o palestrante já havia subido ao palco. Eu olhava para Carina e ao mesmo tempo o público ia se calando. Olhei para trás e vi um auditório lotado. Aí escutei aquela voz...

Era uma sinfonia doce. Era música nos meus ouvidos. Olhei para o palco e enxerguei o dono dela. Encantei-me no mesmo instante. As preocupações anteriores já não mais existiam. Naquele momento minhas atenções eram todas voltadas ao palco.

Foi uma palestra até interessante, mais pelo palestrante do que pela palestra em si. Ao final eu via Carina mais alegre e confiante. Ela percebeu que sabia a matéria, só não tinha se dado conta disso. A palestra ajudou-a a perceber sua confiança. Eu olhava para o palestrante e me encantava cada vez mais. A fantasia tomava conta dos meus pensamentos. Eu imaginava aqueles braços me envolvendo e me aquecendo. Aquele olhar penetrando meu íntimo e desvendando meus mais profundos segredos. Aquela boca me beijando intensamente...

Cutuquei Carina e disse:

- Eu vou ter um filho desse homem!

Falei mais por falar, pois fiquei tão encantada com ele que acabei falando bobagem. Carina também o achou bastante interessante, mas ela se empolgou mesmo foi pelo conteúdo da palestra.

Descobri o seu nome: Marcos. Fiquei sabendo que talvez ele iria lecionar no sexto semestre do meu curso.

O recesso passou se arrastando. Eu estava louca para que as aulas começassem. Queria ter contato com o novo professor que a essa altura eu já sabia: iria lecionar no curso de História.

Logo no primeiro dia de aula, mais uma vez, cheguei atrasada e não sabia onde era a classe. Encontrei Carina e ela me acompanhou até a sala. Ela foi dizendo que havia passado e que cursaríamos mais esse semestre juntas.

Entrei no recinto e minha primeira visão foi Marcos. Ele estava de costas escrevendo no quadro branco. Seus dedos estavam manchados de azul por causa do pincel. Seu cabelo estava um pouquinho desarrumado e suas roupas lhe caiam bem. Ele virou para o meu lado e tranquilamente disse:

– O atraso é irmão do fracasso!

Fiquei um pouco envergonhada e aquela frase me despertou para a realidade.

A aula foi maravilhosa. Além de lindo Marcos é inteligente, bom astral e muito comunicativo. Sua voz era tão suave que se eu fechasse os olhos eu poderia viajar...

O tempo foi passando e as provas finais se aproximavam. Meu encanto por Marcos já se estendia há quase Três meses. Carina, desta vez, não estava preocupada. Dizia que era uma “nova mulher”. Agora, mais confiante, percebeu que era só estudar um pouco mais. Nós começamos a frequentar as aulas de reforço dadas por Marcos. Eu fiquei mais íntima dele. Começamos a sair e nos conhecemos melhor. O encanto foi crescendo. Um dia nos beijamos e o mundo ficou mais colorido. Estar com Marcos era a melhor coisa que me acontecera no semestre. Vivemos um mês intenso. Fiz coisas que nunca havia feito em minha vida. Eu era a felicidade pura. Para mim não existia mais nada. Eu acordava pensando nele e dormia, quase sempre, ao seu lado. Mas como a felicidade é um estado, não é uma permanência, as coisas começaram a acontecer.

Um dia cheguei à aula e Marcos não estava lá. Perguntei a Carina onde ele se encontrava e a resposta veio como um torpedo em meu peito: “Ele foi embora”. Meu mundo caiu. Fui para casa, e lá ouvi uma mensagem na secretária eletrônica. Era aquela voz maravilhosa:

- Oi Clara, sou eu Marcos. Tive que vir às presas para minha antiga universidade. Precisam de mim aqui. Não deu para te avisar antes, pois a passagem que me mandaram era para hoje. Saí correndo para pegar o avião. Um beijão e até qualquer dia.

Tentei ligar para ele, mas seu celular estava fora da área de serviço. Eu não sabia se ele tinha um número fixo, não sabia seu endereço, não sabia nem qual era a cidade em que ele estava. Eu achei que meu semestre havia acabado naquele momento. Eu não tinha mais ânimo para voltar às aulas. Procurei a direção e eles não me informaram o endereço, ou sequer o telefone de Marcos. Fiquei completamente arrasada. Não queria mais sair de casa. Não queria mais saber de nada. Só pensava em Marcos. Carina vinha me visitar. Ela tentava me animar. Ficava comigo sempre após suas aulas e insistia que eu deveria continuar estudando. Passei mais alguns dias pensando e então resolvi voltar.

“Abelha ocupada não tem tempo para o sofrimento!”

Voltei e me empenhei para recuperar as minhas notas. Eu não queria ter tempo para pensar nele. Eu abracei os estudos. Fiz a prova final e passei.

Após o último dia de aula estava eu, indo para casa, quando começaram as tonturas e enjôos. Eles persistiram por muito tempo. Meus seios ficaram inchados e apareceram algumas manchas em minha face. Eu não queria acreditar...

Na semana seguinte, numa quarta-feira, estávamos, minha mãe e eu, almoçando. Senti um embrulho repentino no estômago que me fez curvar. Saí correndo para o banheiro. Entrei debaixo do chuveiro e nem percebi que tinha deixado a porta aberta. Minha mãe veio logo atrás de mim e olhando para meu corpo soltou um berro extremamente agudo:

“Você está grávida?!?!”

Fiquei furiosa com essa sua atitude. Eu disse que ela era louca, que isso não era verdade e que ela me deixasse em paz. Ignorei que minha menstruação já estava atrasada. Minhas emoções estavam abaladas. Eu pensava em Marcos e sentia um misto de paixão e raiva. Não sabia o que fazer. Era um desespero total.

Resisti até quando pude. Fui fazer o exame em um laboratório perto de minha casa. Não encontrei Carina. Acho que ela havia se mudado repentinamente – mais uma pessoa que me abandona – pensei. Para não ir sozinha chamei umas colegas da faculdade. Fiquei um tempo esperando até ser atendida. Eu estava muito nervosa. Eu ria, depois chorava, ria, depois chorava. Entrei no recinto e o técnico preparou a ampola para tirar um pouco do meu sangue. Senti uma picada, olhei para o lado e apaguei. Acordei em uma cama macia. Minhas colegas estavam sentadas. Tentei me levantar, mas logo veio uma enfermeira e me deteve.

– O que houve comigo? Perguntei com um ar de preocupação.

– Não foi nada. Só um desmaio. Você deve estar com um pouco de anemia. Só isso. Respondeu a mulher de branco que cuidava do soro que estava acoplado a meu braço.

O resultado do exame ainda não estava pronto e isso só agravou mais o meu estado. Senti uma ânsia de vômito súbita, um formigamento nos pés, uma dor no peito e minhas vistas estavam embaçadas. Passado algum tempo me recuperei e soube que o exame já estava pronto. Recebi o envelope do técnico e fui logo abrindo. Não consegui entender muita coisa, mas uma palavra logo abaixo me chamou a atenção:

“Positivo”.

Caiu uma bomba em minha cabeça. Pensamentos de tirar o feto e não lembrar mais que isso aconteceu passavam em minha mente numa velocidade espantosa. Minhas colegas tentavam me animar e me levaram para casa. Lá eu refleti sobre tudo. Minha vida iria mudar repentinamente. Eu era muito jovem e tinha um mundo para enfrentar. Um bebê agora me atrasaria muito. Minha cabeça doía cada vez mais. Eu estava desesperada. Eu tinha que falar com Marcos. Ele deveria saber e tinha que me ajudar.

Tentei por várias vezes ligar em seu celular. Após muitas tentativas desisti de procurá-lo. Eu já não sabia o que fazer. Meus olhos estavam tão inchados de tanto chorar que quando me olhei no espelho levei um susto. Abri o chuveiro e fiquei horas sentada sentindo a água morna cair em meu corpo.

Meus dias começaram a ser difíceis. Eu sentia muita tontura e enjoos. Não conseguia mais comer direito e “apagava” com frequência. Era tanto “peso” em cima de mim. Era muita responsabilidade. Eu, uma garota ainda, prestes a me formar. Esse filho iria me atrapalhar muito. Então, sem pensar, certa manhã eu tomei um copo de água sanitária. Lembro-me de ter vomitado muito e de ter caído. Acordei no hospital. Minha mãe ao meu lado com lágrimas em seus olhos e um envelope em suas mãos. Era o mesmo envelope do meu exame. Ela me apoiou muito. Falou que eu nem deveria sequer pensar em tirar o seu neto. Disse que já tinha conseguido entrar em contato com Marcos e que ele iria ligar para falar comigo. Ela se mostrou uma amiga e tanto. Com ela ao meu lado me senti protegida e renovada.

Saí do hospital e no caminho de casa meu telefone tocou. Era Marcos. Nossa conversa foi rápida e amarga. Ele tirou o "corpo fora" dizendo que não tinha certeza que era o pai. Afirmou que nosso “caso” era só uma aventurazinha e que eu tinha de saber que não era nada sério. Sugeriu que o melhor para mim era tirar o bebê. Ele se mostrou um moleque no meu ponto de vista. Minha decepção cresceu junto com a vontade de conceber a criança. Meu filho! Ele não tem culpa de nada e só quer nascer e ser feliz. Se não tiver um pai por perto que se “dane”. Eu sou mais eu e sei que minha mãe vai me ajudar. Quem tem família, mesmo pequena, tem tudo.

Liguei a televisão e distraída comecei a mudar de canal. Parei em um programa onde um jovem casal se mostrava bastante feliz com a chegada, não programada, de um lindo bebezinho. Aquela imagem me emocionou. Minha mão se deslocou até meu ventre e palavras de carinho saíram de minha boca. Prometi que seria uma mãe que daria muito amor e atenção para esse serzinho que crescia dentro de mim. Acho que naquele momento eu me tornei uma mãe de verdade.

Consegui deixar um recado na caixa postal de Marcos falando que ele não precisava me procurar mais. Eu havia decidido ter meu filho sozinha e sentia raiva por ele ter dito que era melhor tirá-lo.

Minha gravidez começou a ficar complicada, e já no segundo mês eu estava com uma grave deficiência de ferro. Isso refletia na criança. Eu estava em um estado de irritação constante. Não conseguia falar com ninguém sem ser agressiva. Minha mãe teve que me aturar por um bom tempo. Eu pensava em Marcos e minha raiva aumentava. Só me acalmava quando conversava com meu filhinho. Minha relação com o feto era de um grande afeto e o fato de pensar em não tê-lo, era fatal. O futuro é incerto, mas eu, fortemente estava cada vez mais fisgada a encará-lo de frente a qualquer custo.

Ao final do terceiro mês de gestação meu médico pediu vários exames e seguidas ressonâncias magnéticas. Eu andava muito fraca, mas minha curiosidade era extremada, pois sou estudante de História e gosto de saber de tudo. Eu sabia que algo estava errado. Eu perguntava tudo. Queria saber de tudo. Desconfiada, não deixava o médico em paz. Percebi que ele me escondia algo. Seu rosto parecia apreensivo e não consegui arrancar nenhuma informação.

Já entrando no quinto mês de gravidez fiz mais uma bateria de exames. Eu pedia para o médico me mostrar meu bebê. Eu já tinha feito às ressonâncias, mas nunca tinha visto as chapas. Ele disse que ainda não estavam prontas e que me mostraria tudo na próxima visita.

Eu estava melhor ao entrar no sexto mês de gestação. Sentia-me mais forte e os enjôos já não eram mais frequentes. Insisti com meu médico para ver as chapas das ressonâncias. O médico não podendo mais se esquivar deu a notícia.

Começou dizendo de forma bem técnica sobre complicações na minha gestação. Insisti para que ele me poupasse dos detalhes e fosse ao cerne do assunto. Ele foi bem direto e conclusivo:

– O bebê está bem e sua saúde é estável. Ele tem um problema de formação. A causa ainda não é sabida, mas o que a ressonância mostra é que ele não tem os braços formados. Essa criança nascerá sem os braços.

Acordei no leito da clínica. Vi minha mãe com os olhos inchados devido a um intenso choro. Perguntei o que havia acontecido e ela me disse que eu tinha desmaiado no dia anterior. Agora eu estava bem e meu bebê também. Lembrei das palavras do médico e chorei.

Romeu nasceu na madrugada do dia 21 de setembro, o dia da árvore. Uma criança saudável e linda. A falta de seus braços era apenas um detalhe. O amor que senti quando o vi pela primeira vez era intenso e poderoso. Esse amor supria todos os detalhes e defeitos pressupostos. Sim, ele iria ter muitas dificuldades na vida. Minha ajuda seria indispensável. Romeu foi e é um milagre para mim. Nossas vidas mudaram completamente desde aquele dia. Eu o amei e o amo tanto que nunca precisei de ninguém para cuidar e dar carinho para ele. Somos só nós dois. Minha mãe faleceu antes dele nascer. Ela não pôde ver seus primeiros passos. Suas primeiras palavras. Seu primeiro dia de aula. Sua vida sendo conduzida. Romeu e eu superamos todas as dificuldades juntos e hoje me orgulho dele cursando a faculdade de filosofia.

Marcos

O mundo é muito cruel. Será que estou pagando alguma penitência? Já perdi tanto nesta vida. Nada me anima. Só esqueço minhas angústias quando lembro daqueles dias passados aqui na capital. Eles me fizeram perceber o quanto minha família era importante.

Fui convidado a participar de um congresso de História em uma faculdade particular em Brasília. O auditório estava lotado. Comecei a falar e notei, na segunda fila, um rosto. Era uma estudante do quinto semestre que me olhava com um brilho tão intenso nos olhos que me encantou.

Eu era casado há quase quinze anos e de repente percebi que minha vida era toda voltada para minha família. Tinha dois filhos e uma esposa linda e dedicada. A culpa nunca foi dela. Eu é que nunca gostei de ninguém. Nem sei por que me casei. Acho que ainda estávamos juntos por causa dos nossos filhos. Esses sim eu amava muito.

Minha esposa e eu estávamos passando por uma crise. Vim para Brasília e pretendia ficar pelo menos um semestre. Já havia sido combinado que se percebêssemos que a distância não nos incomodasse, nós iríamos nos divorciar.

Aquele primeiro dia foi engraçado. Logo após a palestra eu tentei falar com aquela garota, mas fui puxado para dentro da reitoria juntamente com uma equipe de professores. O reitor falando em nome da instituição me congratulou e me olhando nos olhos convidou-me a lecionar na faculdade. Essa já era a minha intenção. Aceitei a proposta que me pareceu muito adequada.

Já no primeiro dia de aula nos encontramos de forma um pouco estranha. Ela chegara atrasada e lembro-me que falei algo referente ao atraso. Descobri que seu nome era Clara. Ela começou a frequentar minhas aulas de reforço. Nós nos tornamos amigos e um belo dia nos beijamos. Fiquei com certo remorso. Nunca havia traído minha esposa. Aquele beijo mexeu um pouco comigo. Eu me senti bem, me senti jovem, me senti vivo. Chegando ao hotel uma súbita culpa me atingiu. Eu fiquei pensando na minha esposa, nos meus filhos, mas aquele rostinho também não saia da minha cabeça.

Tornamo-nos amantes. Eu pensava na minha família, mas sentia também um forte desejo por Clara. Nós saíamos muito. Era muita diversão e o prazer que eu sentia com ela era algo que há tempos não tinha vivido.

O remorso foi crescendo a um ponto que a angústia em meu peito me fazia entrar em prantos todas as noites. Numa dessas noites liguei para minha esposa e chorando disse que a amava e que nunca deveria ter saído de perto dela e de nossos filhos. Combinamos de tentar mais uma vez e então no outro dia já estava a caminho. Nem pensei em ligar para Clara. Eu sabia que se falasse com ela ficaria ainda mais confuso. Dentro do avião acabei ligando e deixando um recado na secretária eletrônica de sua casa. – Ainda bem! – Pensei, se ela tivesse atendido seria pior.

Cheguei a minha casa e fui recebido pelos meninos com abraços e beijos. Eu estava com muita saudade e sabia que agora tudo estaria bem. Minha esposa chegou e após uma longa conversa resolvemos ficar juntos. Estávamos dispostos a tentar novamente. O brilho nos olhos dela e de meus filhos me fez perceber que meu lugar era ao lado deles.

Depois de um tempo recebi uma notícia da mãe de Clara. Não sei como ela descobriu meu novo número de celular, mas o fato é que Clara estava grávida e eu precisava falar com ela. Eu me sentia muito bem com minha família. Estávamos felizes. Essa notícia não iria me atrapalhar. Resolvi falar com Clara para tirar qualquer esperança que supostamente ela poderia ainda ter.

Como já falei, o mundo é muito cruel.

Após aquela fatídica conversa que tivemos minha vida começou a desmoronar. Descobri que minha esposa estava me traindo, que um dos meus filhos estava com uma doença degenerativa e o meu emprego estava por um fio. Para completar recebi uma ligação da mãe de clara dizendo que o filho dela iria nascer sem os braços. Pensei na situação, mas não tinha mais volta. Eu estava longe e achava até que não era o pai da criança. Tentei amenizar todos esses acontecimentos com um porre. Bebi tanto que não sei como cheguei em casa. Só me lembro de ter ouvido minha esposa dizer:

– Estou te deixando. Vou para casa de minha mãe com os meninos. Depois você liga para eles.

Acordei com um gosto amargo na boca. Minha cabeça estava estourando. O telefone tocou. Atendi e tudo ficou escuro.

A voz falava que esse número de telefone foi tirado de um celular dentro de um carro que estava debaixo de uma carreta na rodovia 65. Perguntou se eu poderia comparecer para reconhecer os corpos. Meu estômago embrulhou e nem consegui ouvir o resto da ligação.

No dia do enterro de meus filhos e de minha esposa, os caixões ficaram lacrados. Os corpos estavam mutilados e desfigurados. Nesse mesmo dia perdi meu emprego e minha dignidade foi por água abaixo. Fui para a rodoviária e entrei no primeiro ônibus que vi. Acabei chegando de novo a Brasília.

Todos os dias eu bebo. Vivo no meio da rua, já nem sei mais a quanto tempo, com outros mendigos e suas Histórias. Os funcionários do abrigo em que estou no momento nos levam todos os sábados a um teatro. Hoje vamos ver uma peça chamada: Superação! Não sei do que se trata, mas gosto de ir, pois lá dentro eu fujo desse mundo cruel.

A assistente social disse que teríamos uma surpresa ao final do espetáculo: Nós iríamos conhecer o autor e sua História de vida.

Chegando lá me encantei com o palco. Era uma peça linda. Falava das dificuldades da vida e de como podemos enfrentar tudo. O protagonista, que era portador de necessidade especial, apesar de algumas limitações em sua cadeira de rodas, se superava e tinha uma vida cheia de conquistas. O cenário era belo e as canções maravilhosas. Havia um tempo em que eu não me sentia tão bem com algo. Apesar de gostar do teatro, muitas vezes eu ia e nem ficava atento. Dessa vez não. A peça me chamou mesmo a atenção.

Os aplausos foram muitos. Levantei-me junto aos outros espectadores. Todos ficaram admirados e curiosos em saber quem era o autor daquele fantástico texto. Nossa assistente subiu ao palco e ao microfone apresentou a companhia de teatro. Depois fez um breve comentário sobre a vida do autor e o chamou ao tablado. Vi um jovem acompanhado de uma mulher se aproximar e subir no tapume. Senti algo diferente nele. Uma olhada mais detalhada e percebi que lhe faltava os braços. Olhei para a senhora e reconheci Clara. Ela se tornou uma mulher muito bonita. As lágrimas invadiram meu semblante. O jovem se apresentou. Romeu era seu nome. Ele falou um pouco de sua vida. Falou de todas as suas dificuldades. Fez um relato desde o seu primeiro dia de aula até o dia em que publicou seu primeiro livro. Já eram quatro e essa era a sua primeira peça. Ele falou ainda, que não tinha nada do que reclamar na vida. A falta dos braços era superada por uma habilidade nas pernas que o permitia fazer quase tudo. Senti um orgulho mesclado a uma dor no peito que me fez chorar mais.

Voltei ao abrigo com uma publicação que ganhei da assistente social. Era uma edição de um livro de Romeu e o título era: Abraça-me!

Estou agora com uma garrafa de água ardente barata e um pouco de veneno de rato em um frasco a parte. Comecei a foliar o livro. O primeiro capítulo se chama: Tudo por um Pai. Não sei se vou conseguir chegar até o final. A cada capítulo é um mar de lágrimas. Sinto-me infeliz e embriagado. Acabei de perceber que a garrafa e o frasco estão vazios.

"Que Deus me perdoe."

Marcelo Pompom
Enviado por Marcelo Pompom em 22/10/2015
Reeditado em 25/02/2021
Código do texto: T5423352
Classificação de conteúdo: seguro