SENHOR *

E uma enorme luz branca apareceu no horizonte. Apesar de seu brilho ser muito mais intenso do que o do Sol, não cegava, mas sim enchia o espírito de deslumbramento. Uma longa fila indiana de pessoas seguia para ela. Indivíduos dos mais variados: homens, mulheres, velhos, jovens, adolescentes, brancos, mulatos, negros, orientais, bem-vestidos, maltrapilhos, com roupas tradicionais de países distantes, etc. Tudo isso ocorria em uma enorme planície verdejante que se estendia até aonde se podia enxergar. Olhou para trás e verificou que a fila se estendia até o infinito. Seria de se esperar que houvesse um grande burburinho de conversa, mesmo que as pessoas não falassem a mesma língua. Mas impressionantemente reinava o mais absoluto silêncio. Tanto que dava para ouvir o que os que chegavam diante da Luz diziam, mesmo tendo centenas na sua frente. E era invariavelmente:-"Senhor, Senhor!". A maioria era tragada por um buraco que se abria. Sua profunda escuridão, que se percebia nos poucos instantes em que se podia ver seu interior, contrastava de maneira assustadora com a do luminar maravilhoso.

-"PUTA QUE PARIU!!!!!!! É O DIA DO JUÍZO!!!! Caralho!! Mas que porra!! Como foi que eu morri?!!!" Tentou se lembrar durante um tempo mas ao perceber que a fila ia lentamente diminuindo percebeu que tinha problemas mais urgentes para resolver.-"Vamos lá, vamos lá, como é que funcionava a parada mesmo?"

Lembrou-se do seu batismo. Tinha sido um jovem extremamente problemático. Apesar que não burro. Nunca repetira de ano e suas notas eram altas. Mas justamente por isso se dava o direito de tocar o terror na escola. Aprendera inglês, a tocar guitarra, montara uma banda de rock, fizera teatro amador, quase chegando a ser profissional. E usara muita droga. Lembrou-se do estado de agonia espiritual em que conheceu a Jesus e como aceitá-lo mudou sua vida. Tinha 27 anos. Largou tudo, foi trabalhar de frentista de posto, ia em todos os cultos e fazia o que podia pela igreja. Batizou-se com 28 anos. Lembrou-se da primeira frase que ouviu de uma das irmãs mais mal faladas da pequena congregação da qual agora fazia parte:-"Bom, agora lembre-se. Vá e não peques mais!"

-"Bem então têm essa primeira regra. Só vale o que veio depois do meu batismo..." Ele ficou uns 4 anos firme na igreja. Fez curso de técnico de enfermagem, arranjou um bom emprego, fazia serviço voluntário, caridade, namorava sério. Até conseguir entrar em uma faculdade pública. Foi mais ou menos aí que as coisas se perderam. Era muita mulher, tudo muito fácil, muito prestígio, não dava para resistir. Ele desbundou geral e talvez o maior crime não tenha sido este, mas sim o de continuar fazendo o papel de bom moço para sua família, namorada e para a igreja.-"Mas Senhor, como eu ia resistir? Como eu poderia resistir? PORRA!!! Quem eu estou tentando enganar?! É com Ele que eu vou prestar conta!!!" E ele sabia que fez as coisas meio que de caso pensado. Não fez alarde das suas convicções religiosas e de seu namoro na faculdade. Há algum tempo queria uma forma de escapar das "amarras" que a doutrina da sua religião lhe impunha e essa parecia ser a oportunidade perfeita.

A fila continuava avançando e mais e mais o desespero dele aumentava:-"Meu casamento?!! Meu casamento?!! Podia haver maior crime que seu casamento?!!" Seu avô, que o havia criado, que sempre tivera ele como o preferido e fazia todos os seus gostos, sofrera um infarto grave. Conhecedor que era da área, sabia que se ele sobrevivesse demandaria cuidados intensivos para o resto da vida. Justamente agora que ele estava começando a curtir a dele. Na noite que antecedeu a cirurgia, que foi realizada na Beneficência Portuguesa, ficou durante horas indo e voltando na passarela sobre a 23 de Maio. Se fosse para a direita ia para igreja pedir para que seu "velhinho" sobrevivesse. Se fosse para a esquerda ia para o puteiro. Nunca gastou tanto dinheiro com as "primas". Na manhã seguinte, completamente esgotado, descobriu que a cirurgia fora um sucesso. Fez o pedido para a sua futura esposa no dia seguinte. Casou em seis meses, teve sua primeira filha em 16. Seu avô acabou passando os seus últimos três anos de vida com seu irmão, a quem ele sempre maltratara.

-"Tantas vezes eu pedi perdão, Senhor! Sempre ajudei o asilo da igreja e cuidei bem dos idosos pensando nisso! Você têm que me perdoar!! Na verdade o Senhor não têm que nada. Abençoarei quem eu quiser abençoar e Terei misericórdia de quem Eu quiser ter misericórdia" Era assim que estava escrito. Esse pensamento era ao mesmo tempo desolador e reconfortante. Apesar da grande maioria das pessoas serem engolidas pelas trevas, algumas entravam na Luz. Quando isso acontecia Ela parecia brilhar com mais esplendor.

Mas em vão tentava listar para si mesmo o que tinha feito de bom desde seu batismo. A única coisa que se orgulhava era de sua vida profissional. Sempre tentara fazer o melhor para os seus pacientes e para os seus subordinados. Isso ao custo muitas vezes de sua vida financeira. Mas todo o resto era uma mixórdia só. Inúmeras traições, descaso com seus filhos, mentiras em cima de mentiras, pequenos golpes aplicados a torto e a direito, e por aí vai. E quanto a espalhar o evangelho... Há mais de três anos que não ia a um culto, não praticava nenhum tipo de idolatria, sendo honesto. Mas a verdade é que não fazia nada. Não conseguia se lembrar a última vez que tinha se ajoelhado para orar.

Tentou lembrar um Pai Nosso. -"...Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. TAÍ!!! ISSO EU TENHO DE BOM!!! Nunca fui vingativo! Sempre fui de deixar prá lá! Ele vai ter que considerar...". Mas imediatamente veio a lembrança do irmão. Mais velho dois anos, abusador, maldoso. Por estranhas relações do passado, seu avô, que sustentava a casa, não tinha muita paciência com ele. Ele revidava da mesma forma o quê virou um círculo vicioso sem fim. Seu pai havia caído no mundo e sua mãe, percebendo a diferença que o velho fazia entre os dois, tendia a dar mais atenção à ele. Em resumo, uma puta casa de louco. Só fora próximo dele quando os dois usavam drogas e aprontavam juntos. Depois que parou se afastou completamente. Foi preso por uns três anos, saindo um pouco antes do infarto. Nunca foi visitá-lo. Sua mãe e seu avô nunca faltaram em nenhuma. Ele foi o último caso do seu velhinho (ele era advogado). Após seu falecimento tentou uma visita de conciliação. Ele dirigiu o carro com eles, sua mulher e sua filha a 140 km/h. Não disse nada. Apenas nunca mais falou com ele. Sua mãe várias vezes pediu para que ele o perdoasse, sem sucesso:-"Mas que merda. Como eu posso negar que o que eu sempre quis, a minha vida toda, é que ele se fudesse?!"

Faltavam agora uns três e seu desespero era absoluto. Com todas as suas forças tentou olhar diretamente para o Esplendor e fazer uma oração. E não conseguiu. Finalmente era a sua vez. Completamente ciente do seu destino ele elevou sua voz e disse...:-"Senhor, senhor." Um rosto barbudo de um homem de meia idade com um colete amarelo fosforescente apareceu na sua frente. Tinha a mão no seu ombro e o agitava delicadamente. Sua cara estava colada ao vidro do trem, aonde escorria um filete viscoso que provavelmente era a sua baba. Acordou assustado, ligou para a namorada e desmarcou o motelzinho que tinha agendado, avisou a esposa aonde estaria e correu para conseguir assistir o culto das 19:00.