O SELVAGEM DA MOTOCICLETA

-"O que eu quero? O que eu quero?"

Desde que seu psiquiatra lhe passara essa pergunta como "lição de casa" há um mês, essa deveria ser a milionésima vez que ficava sentado na poltrona em frente a sua estante, sem uma resposta. Olhava fixamente, como sempre, para o busto de Goethe, mas dele só recebia silêncio.

-"Será mulheres?"

Pensou jocoso, não podia negar que já fora, um dia. O sonho de um garoto gordo, feio e inábil do passado, que passava os dias imaginando como seria incrível o dia que descobririam o quão incrível ele era e que todas as garotas iriam cair aos seus pés. Quantas e quantas vezes vira seus amigos fazerem gato e sapato delas:

-"Ah, se elas me dessem uma oportunidade, eu as faria feliz!"

Bem, tanto lutou por ele que um dia este dia chegou. Para ele se revelar um canalha muito pior do que todos os que havia recriminado. Mentiu, explorou, abandonou...Algumas perderam suas reputações, outras foram expulsas de casa, várias tentaram suicídio, uma perdeu um filho e o útero. Mesmo a mulher com que casou suportou tanto sofrimento que vivia hoje a base de remédios. A esta nunca fora leal, apesar de que há alguns anos era fiel. Nos últimos cinco anos tivera inúmeras oportunidades de aventuras amorosas, mas sempre recuara na hora H. Sentia-se estranho por isso, mas preferia que continuasse assim. Durante algum tempo ainda saíra com prostitutas, mas mesmo com essas parou pois acabava, de uma forma ou de outra, estabelecendo algum tipo de relacionamento. Não conseguia resistir ao prazer de conquistar, de seduzir e, de por fim, magoar... Esse médico vivia insistindo para trocar seu antidepressivo por um mais moderno e ele resistia. Justamente porque a medicação que tomava hoje abaixava a libido. Sentia desejo, bastante até, que muitas vezes descarregava na esposa de uma forma quase selvagem. Mas morrera todo o instinto de caçador. Suas memórias bastavam. Ainda usava seus dotes de seduzir, mas unicamente em benefício profissional. O que, reconhecia ironicamente, era uma forma de prostituição. Aí fazia com gosto pela perversão da coisa.

-"Poder, prestígio?"

Já os tivera muitas vezes. Ainda possuía bastante. Em 30 anos como investigador da polícia civil acumulava inúmeros casos resolvidos e estórias impressionantes. Algumas lendárias. Mas tão conhecidas como suas proezas eram suas cagadas, suas recusas em assumir cargos de maior responsabilidade, seus atos impulsivos e as suas lutas contra moinhos de vento. Nesses anos todos fizera três faculdades e dezenas de cursos, mas nunca Direito, que lhe abriria o caminho para o cargo de Delegado. Aprendeu inglês, espanhol e eletrônica, mas nunca procurou nada fora da policia. Nem mesmo lecionar. Gostava dos elogios quando resolvia uma coisa grande ou complicada, mas era só.

Uma carreira admirável. Fuzileiro, narcóticos, homicídios, contrabando, roubo, crime organizado, várias delegacias. Uma coleção de grandes méritos e besteiras ainda maiores. Sem falar dos surtos, das internações por drogas, das crises de depressão, dos sumiços...

Se tornara uma pessoa que todo mundo queria como amigo, mas ninguém queria como parceiro. Parecia que hoje tinham achado uma espécie de solução. Ficava sendo continuamente "emprestado" para os departamentos para ajudar em casos pontuais. Não conseguia um delegado que quisesse ser seu chefe.

Talvez fosse dinheiro? Não! Definitivamente não. Era conhecido por sua estranha moralidade. Não se envolvia em grandes roubos ou esquemas, o que não lhe trazia problemas com seus superiores. Mas não recusava pequenos agrados e regalias, não provocando antipatia na "turma do arrego". A sua liberalidade era lendária. Sua esposa vivia em desespero tentando guardar cada centavo que podia antes que ele gastasse em um dos seus rasgos de prodigalidade.

Cansado de olhar para o busto de Goethe, virou-se para o retrato de Dostoievski. Quem sabe aquele russo maluco não tivesse alguma resposta? Olhou atentamente para ele por mais de duas horas, mais nada. Não seria daquela natureza passional que viria alguma luz. Existia genialidade naquela loucura, um sentimento e uma inquietação profundas,, mas não era seu caso. De repente todo o ambiente se escureceu, passando a ficar iluminado como em um filme preto e branco. Ouviu o som de um fosforo se acendendo e não se espantou ao ouvir aquela voz do passado.

-"Então, como vai?"

Era a figura de um loiro, rosto levemente marcado, vestido como motoqueiro, fumando um cigarro, um sorriso nos lábios... Mickey Rourke!!!!!

Seu herói de infância! Quantas e quantas vezes sonhara em poder dar aquele sorriso irônico de superioridade do Selvagem da Motocicleta! Quantas vezes encarnou o personagem dele em Nove Semanas e Meia de Amor em suas conquistas, o olhar lânguido e o jeito sensual! Como achara incrível aquele ar de desilusão que ele tinha em Balada de um Pistoleiro, aonde ele encarnava um guerrilheiro do IRA (Ireland Revolutionary Army)! Recentemente ele reviu esse filme e percebeu que sua atitude com a sua profissão (a polícia) hoje era idêntica. Que aquilo era na verdade horrível, de uma forma que ele nunca pode prever. Lembrou-se como venerava Coração Satânico, revira o filme até conhecê-lo de cor. As inúmeras vezes que pensou, diante das imensas tragédias que viu, algumas delas sendo ele o responsável, se não seria como o personagem do filme, alguém que vendera a alma ao diabo e não sabia?

Ele ficou ali, sorrindo, com todo o quarto em preto e branco, por um bom tempo. Acendeu mais um cigarro, olhou fixamente para ele com o mesmo sorriso enquanto esse turbilhão lhe varria a mente. Só depois de algum tempo é que ele entendeu. De uma forma completamente idiota sua vida tinha sido um enorme sucesso! Ele era a personificação do seu ídolo de adolescência!

Quase ao mesmo tempo o cigarro dele chegou ao fim. Deixou cair no chão e apagou com o sapato. Com o sorriso ainda nos lábios disse:

-"Valeu a pena?"

-"Não..."

E assim como veio, se foi. Deixando chorando na poltrona um triste homem de meia idade bem sucedido.