O HOMEM QUE DECIDIU NÃO MORRER

O coronel Alarcão morreu na fria madrugada do dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e cinquenta e nove, há exatos cinquenta e seis anos. No dia da sua morte, estava confortavelmente sentado em sua poltrona defronte para o janelão de onde se avistava o verde-azul do mar, saboreando a sua costumeira chávena de café. E assim passava os dias, observando o sinuoso e incansável dançar das vagas, que se espatifava no quebra-mar. Descansava a vista fatigada na fímbria do horizonte, donde balouçavam distantes velas brancas de jangadas.

Sem que ele percebesse, sentou-se ao seu lado, sorrateiramente, o Ceifador, o Mercador de Almas, o chamado Espectro das Trevas, com suas enormes asas abertas em leque, pronto para arrastá-lo para a voragem dos infernos.

O coronel estreitou-se na poltrona sentindo lhe invadir o sopro morno da morte. Deu-lhe ânsias de vômito, pois sentou-se ao seu lado o próprio Demônio. Refez-se do asco que lhe causava o odor podre da efígie funesta que lhe atormentava. Atreveu-se então a desafiá-la e perguntou-lhe, inconscientemente como Dante:

- Quem és tu que vens antes do tempo?

E a Alma Negra que espreita o Orgulho e a Avareza, respondeu na mesma réplica de Virgílio:

- Sobre esta lama imunda em breve poderás perceber o que se espera.

O velho estremeu, pois sabia que a Morte o tinha encontrado e já o algemava. Tinha ainda tanta coisa que queria fazer! Chorou em desespero e o anjo escarlate cingiu-lhe num abraço putrefato e disse taxativo:

- Abandonai toda a esperança!

- Mas não quero morrer ainda. – sussurrou o coronel aflito com a iminente desgraça. Ainda tinha a pequenina esperança de ganhar mais alguns anos, quem sabe uma trinca. O ceifador sorriu deixando escapar o hálito azedo dos mortos.

- Queres mais trinta anos? Terás que me convencer. Aí não te levo em meu manto.

O coronel então propôs para o anjo comedor de almas, um ardil, cujo conteúdo e tratado não poderemos jamais saber, por ser um acordo entre almas perdidas. O chamado Espectro das Trevas topou a espicaçada, mas advertiu o coronel solenemente:

- Mas tenhais muito cuidado, pois não se engana a Morte. A cidade de Dite tem muitas moradas e que culpa tenho eu de vossa vida perversa?

O ceifador então saiu e deixou o velho sentado em sua poltrona, como era seu costume passar ali as tardes. Ficou acertado que voltaria daqui a trinta anos para levá-lo definitivamente. A brisa sadia da tarde voltou a soprar e o velho coronel ficou ali petrificado defronte para o janelão de onde se avistava o verde-azul do mar.

Depois disso, depois que o Mercador de Almas desamarrou as cordas da morte, desvencilhando-se da funérea tarefa, o velho coronel permaneceu ali sentado, impassível, calado, pensativo e apreensivo quanto ao que acabara de acontecer. Havia com sucesso negociado a sua Hora com o Ceifador e obtido êxito. Permaneceu assim absorto por muito, muito tempo, até a terceira vigília. E foi assim que o encontraram na manhã seguinte. Completamente catatônico.

Os médicos, um a um, o examinaram e meneavam a cabeça entre si. Não havia mais o que ser feito, a não ser deitá-lo o mais confortavelmente possível, pois era certo que tinha sofrido um derrame fulminante, resultando em um quadro de catalepsia patológica grave. Provavelmente nunca mais se recuperaria.

Ele, o coronel Alarcão, irremediavelmente encarcerado em seu corpo petrificado, ouvia tudo sem poder mover sequer um dedo.

Dizem que ficou assim durante exatos trinta anos, tendo uma morte atroz em seguida.

E nada mais foi dito.