Ite, missa est

A igreja é essa mesma, matriz de Nossa Senhora do Pilar, construída no lugar da matriz antiga, que diziam ser uma lindeza e que as labaredas consumiram em 1914. Deve ter sido erigida ao longo de bons anos, pois é sólida construção, nesse estilo gótico-romano, torre única, mas bem comum, replicada em algumas outras paróquias do meio oeste das Gerais, e quiçá, pra bem mais. Sua inauguração deve ter-se dado lá pela década dos vinte, meu bom ouvinte. 1921, pra ser exato.

Fui pegá-la, já morador na Velha Serrana, no finalzinho da década de cinquenta - antes dessas duas ou três reformas - em que se conseguiu descaracterizá-la, com tantos enfeites e adereços, e até esse azul acinzentado no seu exterior, mal bolado, só pra afuguentar o pecado.

Mas se agradado tá o Senhor, vamos logo ao interior: parecia então mais espaçoso, menos lúgubre do que agora. Mais alegre, e mais não se alegue - ou será essa minha visão que ver moderno não consegue?

Ali se juntava quase toda a cristandade da sociedade municipal numa jornada dominical: da missa das cinco, iniciada sob a fragrância do incenso, antes ainda do sol se mostrar, revestida de uma fascinação particular, tudo rezado em latim, e muito pouco vernacular. A gente que ali acorria naquela quase madrugada vivia encantada; vinha a seguir a missa das sete, já sem aquele ar de mistério da das cinco, mas ainda cedinho para um domingo onde se busca dormir mais um tiquinho; a

da nove era temática, a missa das crianças que, com sua fé nascente, ou suas bolinhas de gude reluzentes, enchia os bancos, invariavelmente sob o olhar escrutinador das professoras, vi(r)gilantes ajudantes dos celebrantes; e, por fim, vinha a missa das dez, já se anunciando lá fora aquele mormaço, e mais adentro, o jejum a queimar os estômagos e almas, não era a missa das dez a da placidez, como vês.

E, naturalmente, seriam mais folgados os seus frequentadores - numa contradição aparente com o sacrifício que jejum dominical impunha à gente. Porém, a inundação da luz, a presença de muitos cavaleiros

que vinham das cercanias, a gente melhor vestida e escovada, davam um toque particular àquela celebração.

E era amplo e variado o arco dos tipos peculiares de fiéis, com seus lugares marcados, seus trajes suados, ou seus linhos citadinos, já mais folgados. E nem por isso menos contritos.

Até o celebrante, nessa hora, o já alquebrado Monsenhor Vicente, dava solenidade adicional ao ritual, trepando ao púlpito para fazer a sua homilia e, volta e meia se concentrando nos ferozes ataques "...à insânia dos homens que ficam fuçando as maravilhas do universo do Criador" - numa alusão à corrida espacial que se iniciava e em que logo os russos, comunistas, andavam na dianteira - para lhes rogar praga assinalando que ao invés de ir à lua,por quê não iam ao sol, onde iam ser queimados vivos para aprenderem que com as coisas do Senhor quem toca tem seu fim arrasador.

Estupefatos uns, indiferentes, ou sonolentos outros, a missa prosseguia rumo ao meio dia, com a fome a galope, quase sem stop.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 22/09/2015
Reeditado em 06/03/2022
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