Chupadora contumaz

Papai chegou com a bomba debaixo do braço. Trouxera-a de Beagá, como uma novidade que só se dava além do horizonte. Com suas quatro bóias amarelas ela era capaz de flutuar enquanto chupava numa avidez danada.

E as bóias faziam-na parecer mais leve do que era. Ao centro, bem protegido o motorzinho com aquele agudo alarido. Iria ela nos salvar? Tinha suas vantagens, e alguma desvantagem. De positivo, o

peso, o fácil manuseio e a potência. De negativo, o fato de não ser fixa e requerer um manuseio a cada utilização.

E ela ia correspondendo às expectativas, com precisão e obediência de cão. Eram uns 18 metros a baixá-la, com a mangueira, o fio elétrico e o fio de sustentação. E terminada a operação, puxar aquilo tudo para cima, de volta, enrolar e tampar a cisterna. Duas horas completavam a caixa d´água, que havia recebido apenas um 'mijico' da água da rede fornecida pela prefeitura.

Ah, e havia a vantagem extra de não oxidar a água, como faziam as bombas fixas, que dependiam da tubulação de canos de aço, e ainda faziam uma barulheira do arco-da-velha.

Até o Tio Antônio, que apesar de vizinho de cerca, poucas vezes aparecia em nossa casa - a exceção que fazia era para quando nascia algum bebê - deu as caras pra ver aquela maravilha. Pouco disse, além da leitura que fez do rótulo metálico que dava marca ao engenho: Satelite. Leu assim, paroxitonando uma proparoxítona. Ao

que uma das manas corrigiu, mas ele não se deu por vencido, convencido que já estava.

Se em seu livro manuscrito, que lia regular e espevitadamente no quintal, para nós ouvirmos, achava que o próprio faraó era um 'egipicio', não ia dar o braço a torcer àquela provocação da pirralhada.

E a Satelite foi dando conta do recado, matando muita sede como lhe era esperado. Dava alguma manutenção quando uma ou outra bóia precisava ser trocada por trincamento na junção, que resultava das fricções de suas muitas descidas e subidas naquelas paredes revestidas de tijolos de nossa cisterna.

Até que um dia veio a advertência Beu, engenheiro do ITA, com uma vocação fermiana para a física e um tanto de premonição jeremíaca:

"Pai, afasta daí essa bomba. Tudo poderá ruir". E explicitou aos atônitos circunstantes a razão de sua profecia: um movimento constante, regular desse artefato sobre as águas, estendendo suas as vibrações às paredes da cisterna, fá-las-á desmoronar e um buraco negro engolirá tudo o que estiver aqui em cima e na cisterna couber - com ou sem rima. Lembrem-se daquele fato famoso da ponte de

concreto que ruíra direto sob a mera marcha um batalhão!

Mais dado à matemática do que à má temática da física, papai se convenceu, nada obstante. Precisa prestigiar a sapiência do filho. Nesse meio tempo - antes que as paredes da cisterna resolvessem se despedaçar - viera um suprimento mais farto da rede municipal e a água para beber voltou a depender do velho sarilho, da corrente e do balde.

E a Satelite saiu em órbita.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 17/09/2015
Reeditado em 15/07/2023
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