Transição

Fazia quarenta e oito horas que eu não dormia. Meus olhos queimavam com a luz noturna. O dia era como uma página amarelada, cujas escritas eram ilegíveis. Meu corpo estava dolorido, quase não conseguia me mexer. Era claro que estava doente.

Mas doente do quê? Eu não sabia. Tinha vagas lembranças do meu trabalho. O sangue ainda estava impregnado nas dobras das minhas mãos, e minhas unhas corroídas e em tom escarlate assustavam-me. Percebi que estava nu sobre a minha cama e sentia um frio horripilante. Minha boca já não continha saliva, dependia de um velho jarro de água no criado-mudo para poder me hidratar. Eu o olhava com ansiedade, mas minhas mãos não obedeciam minha vontade. Parecia um morto-vivo. Eu queria, mas não podia. Eu aceitava, era meu destino.

Nenhum ruído emergia do chão fúnebre ao meu redor. A janela estava fechada, e a cortina putrefata recobria os vidros. Não enxergava nada além desse recinto ao qual estava incluso sem saber o porquê.

Havia um relógio, mas parecia que suas horas estavam adiantadas, ou atrasadas, sei lá... Já tinha perdido a noção do tempo. Ou quem sabe o horário estava certo? Só sei que eram apenas noites mal dormidas que sentia em minha pele, em meu cansaço.

Espera! Parece que ouvi algo! Sim, são passos! Meu Deus! Socorro, socorro... E a sombra desses passos passou pela porta e não a abriu. Será que não me ouviu? Eu gritei! Mas as palavras não saíram... Por quê? Com grande esforço levei a mão sobre a minha boca e gemi num espanto e horror. Minha boca estava costurada! Sim, por inteira! E já havia cicatrizado. As lágrimas saíam dos meus olhos como chafarizes incansáveis. Não sabia o porquê e nem quem fora capaz de fazer uma brutalidade tamanha comigo!

O que eu fiz de errado? O que fiz? Eu imploro! Digam-me, pelos demônios! Falem-me!

Acho que adormeci chorando, pois quando acordei, senti o travesseiro molhado e quente. Revirei-me com muito esforço na cama, e percebi que o líquido derramado não eram lágrimas, mas sim sangue! Procurei em mim algum corte e nada. Fui rastejando até o espelho, perto da janela, e vi a coisa mais horrível em toda minha vida. Sim, era eu. Mas não de uma normalidade estável, meu rosto estava desfigurado por lâminas da morte, minha boca costurada, minhas orelhas foram cortadas... Só não arrancaram meu nariz para que eu pudesse respirar e ver isso! Era isso que queriam: meus olhos intactos! Preferia que os tivessem extirpado!

Não sei que horas eram quando acordei ao chão, todo sujo de sangue e suor. Parecia que o mundo havia me esquecido e que todos me desprezavam por ser uma coisa sem nome, sem roupa, sem vida.

Hoje ainda me lembro claramente desses dias terríveis que me fizeram esquecer que o ar foi feito para respirar e o sol para sentir o calor sobre a pele; a chuva para molhar o rosto e fechar os olhos ao luar.

Mas por que um ser humano indefeso é colocado a provas tão cabais e imprecisas? Serão pecados a pagar? Responda-me, eu peço.

Guardo ainda as marcas no meu rosto e ainda não consegui sair da minha cama. Estou juntando forças para isso, basta apenas minha mente tomar o lugar do meu corpo, pois através dele já não sinto mais nada.

Quimera
Enviado por Quimera em 04/09/2015
Reeditado em 04/09/2015
Código do texto: T5370820
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