Se Deus existe é o fim do mundo e se Deus não existe também
O debate entre o teólogo religioso Hans Andersen que, apesar do nome, era carioca e o cientista ateu Milton Cardoso Alves que era paulista, transcorria bem e até com certa fidalguia e serenidade por parte dos participantes. Até que foi levantada a questão sobre o porquê de nem a ciência conseguir provar a não-existência de Deus, nem a religião conseguir provar a sua existência.
-- Permita-me, pelo menos, dizer isso: Se Deus existe, você tem que concordar que Ele não é orgulhoso e se Ele existe também é magnânimo. – começou o teólogo. -- Por que permitiu que tanto o seu argumento quanto o meu fossem válidos à luz da razão. Concorda?
-- Não. Ninguém está lá no Céu concedendo nada a ninguém aqui na Terra. – objetou o cientista. – Tudo o que o ser humano conquistou, cada milímetro de chão, só existe porque foi conquistado à duras penas pela civilização humana ao longo de milênios e séculos.
A partir daí o que se viu foi um festival de verdadeiros gladiadores digladiando, cada um acusando o outro de estar tentando vilipendiar a discussão pela sua própria perspectiva.
-- Ora, Milton, toda essa maravilha, o céu, a terra, o mar, os animais, os insetos, a fauna e a flora não podem ter sido obra do mero acaso, venhamos e convenhamos. Há uma inteligência maior por trás disso. Concorda comigo?
-- Não, meu amigo Hans. O planeta Terra é, na verdade, um mero planetóide muito pequeno na periferia da Via Láctea onde milhões e milhões de estrelas e planetas estão presentes no universo. É completamente plausível que um acaso pudesse produzir vida nessa amplitude de incomensurabilidade para falar só do universo conhecido. Ainda existem os buracos negros, por exemplo, dos quais pouco ou nada se sabe.
-- Mas então você considera que Deus é generoso, por ter nos dado toda essa abundância à nossa disposição? Sim, porque podemos desfrutar de tudo e sem pagar nada. – Hans arranca risos da platéia no auditório da rádio.
-- Não, meu caro amigo. – vem à nova carga, Milton. – Não é verdade que tudo esteja à nossa disposição. No começo de tudo, o seu Deus quis que não nos aproximássemos da maçã, a fruta do conhecimento do bem e do mal. E sabe por que? Porque ele nos queria ignorantes e tacanhos frente ao poder dele. E até hoje é assim, a igreja faz de tudo para que as pessoas não tenham independência. – Milton arranca aplausos da platéia.
A discussão prosseguiu, tendo alguns minutos de pausa entre os turnos nos comerciais da rádio Sintonia Fina. Milton vestia uma camiseta verde com inscrições ecológicas, um casaco marrom e uma calça bege. Estava acostumado às entrevistas e programas nas rádios, havendo ele próprio tido um programa sobre ciências muitos anos atrás. Aquele era o terreno natural do físico. Hans usava barba, vestia uma camisa branca de botão e calça preta. Já havia concedido muitas entrevistas e dado muitos seminários ao longo da vida, mas a rádio não era exatamente o veículo ao qual estava acostumado, mesmo assim saía-se bem apesar dos constantes ataques e defesas de Milton.
Uma série de perguntas fora dirigida a Hans e a Milton, levando-os às respostas mais longas e mais específicas. Podia-se ver que tanto um quanto outro empenhavam-se em montar um universo completo da sua teoria e, com isso, tentavam abarcar todas as dúvidas no seu próprio sistema, excluindo o do adversário.
Quando finalmente acabou, ambos proponentes pareciam insatisfeitos, querendo ampliar e continuar aquela contenda. Os debatedores reuniram-se num canto da estação de rádio para continuar a disputa. Surpreendentemente, a conversa logo se transformou em argumentos conciliadores de parte a parte. Estavam assim tão empenhados no diálogo com as ponderações e conjecturas tendo se alongado tanto, que não viram quando seus auxiliares partiram dali e os deixaram para trás.
Dirigiram-se finalmente para o elevador os dois, Hans e Milton, últimos remanescentes do programa que não faziam parte da rádio.
-- Foi uma boa discussão. Acho que o programa teve grande audiência.—disse Hans.
-- Sem dúvida – confirmou Milton ao acionar o botão de térreo no elevador.
-- Mas o que está acontecendo?!? – gritou Hans quando logo após a porta se fechar e o maquinário começar a se mover, as luzes apagaram-se e o elevador parou.
-- Estamos sem energia elétrica. – disse Milton quando as luzes de emergência acenderam-se.
-- E agora? O que vamos fazer? – perguntou o teólogo.
-- Vamos chamar ajuda pelo celular... e esperar.
-- Só isso? Eu tenho claustrofobia.—disse Hans demonstrando grande inquietação. – Não posso ficar aqui.
-- Amigo, não sei você, mas eu vou esperar. Quieto.
--Não, não. Você não está entendendo – Mexia os braços insistentemente o religioso. – Eu me sinto mal. Tenho calafrios...
-- Paciência, paciência...
Passaram-se 20 minutos e nenhum sinal da energia elétrica e nenhuma resposta nos celulares. O que quer que tivesse acontecido, pensavam ambos, interferia também nos sinais dos aparelhos telefônicos portáteis também.
-- Eu quero sair daqui! Eu quero sair daqui! – dizia Hans enfaticamente.
-- Eu também quero. Mas ficar exasperado não ajuda em nada. – cortou Milton.
Hans lembrou-se que carregava um pequeno radinho de pilha na sua pasta e o pôs para funcionar. Imediatamente colocou na estação de notícias.
Atenção! Notícia de última hora! O território nacional foi bombardeado por mísseis nucleares. O Congresso Nacional em Brasília encontra-se destruído em chamas. Até o momento não sabemos de onde partiu ou o que motivou o ataque. Centrais elétricas registram falhas em todo o país. Há um apagão na maioria das cidades brasileiras. Os serviços de internet e telefonia móvel também estão comprometidos. A guarda civil orienta para que, por favor, as pessoas não saiam de casa e se estiverem no trabalho não saiam dos prédios.
-- Ouviu isso? – falou Hans atônito.
-- Inacreditável... – disse Milton.
Logo depois a pilha do rádio acabou e por mais que Hans ligasse e desligasse o aparelho, não funcionava. Longos 30 minutos passaram-se e o teólogo estava nitidamente perdendo o controle dos nervos.
-- Não existe mais nada, entendeu? Mais NADA! – disse Hans ainda mais exaltado.
-- Calma homem. O Brasil é muito grande. Há muitos lugares para se ir. Afinal de contas, quem bombardeou o Congresso Nacional prestou um serviço ao país. Rsrsrs... Aquele bando de políticos corruptos mereceram o destino que tiveram.
-- Não. Você não está entendendo. Se até o Brasil foi atingindo, NÃO EXISTE MAIS NADA! O MUNDO ENTROU EM GUERRA NUCLEAR! – vociferou Hans segurando Milton pela gola da camisa. -- GUERRA NUCLEAAAAAAARRRRR!!!!!!!!!!!!!!!! – Gritou Hans apertando o pescoço de Milton gritando descontroladamente. No afã de se safar da investida do religioso, Milton segurou os braços do homem, mas já era tarde demais... O ataque que Hans empreendia era movido por um desespero atávico devido à claustrofobia e conferia a ele uma força quase duplicada do que ele normalmente usaria. Alguns minutos depois, o corpo de Milton jazia imóvel nos braços de Hans.
Hans estava sozinho com o corpo inerte e se desesperou batendo na porta do elevador até que se deu conta que era um assassino. O homem pediu perdão a Deus e chorou muito, gritando e gemendo alto.
Quando sentiu que não podia suportar aquele sentimento de culpa, decidiu executar um plano ainda pior do que o que tinha acontecido. Se o mundo estava perdido numa guerra nuclear, ele não ficaria para ver essa desgraça. Partiria para o céu ou o inferno, ou seja lá o que fosse.
Pegou um canivete e cortou os pulsos com cortes rápidos e profundos. Assistiu o sangue se esvaziar até que faleceu.
Quando os bombeiros finalmente conseguiram trazer o elevador de volta com o restabelecimento da energia elétrica, horrorizaram-se com os corpos de Hans e Milton. Ninguém entendeu o que tinha acontecido ali.
O programa de rádio que os dois tinham ouvido no radinho de pilha fora escutado de forma incompleta. Buscava trazer as mesmas sensações que os norte-americanos tinham durante a guerra fria, com o medo de um desastre nuclear aos ouvintes brasileiros. Mas como Hans e Milton não puderam ouvir a íntegra do programa entenderam erradamente a notícia. Por uma incrível coincidência, os celulares ficaram sem sinal durante muito tempo por causa de falhas nas operadoras e por isso a impressão de que o mundo havia afundado numa guerra nuclear fora ainda maior.
Os jornais do dia posterior estampavam a seguinte notícia nas primeiras páginas:
“TEÓLOGO E CIENTISTA SÃO ENCONTRADOS MORTOS APÓS FICAREM PRESOS EM ELEVADOR NO PRÉDIO DA RÁDIO. Aparentemente os dois estavam sós no elevador e o teólogo matou o cientista por asfixia e depois cortou os pulsos. Sabe-se que Hans Andersen sofria de claustrofobia. Talvez o religioso tenha perdido o controle dos nervos, matado Milton Cardoso Alves e depois cometera suicídio, mas não se conhecem os reais motivos. Ambos haviam participado de um programa na rádio com um acalorado debate sobre a existência ou não de Deus.”