casas irmãs

As duas casas que ficavam no fim daquela rua eram idênticas. Sempre me perguntei, ainda aproveitando da inocência de criança, se teria sido a mesma pessoa quem as construiu. Lembro que cheguei a brincar numa delas, pois um dos meninos da rua – talvez meu melhor amigo até então - ali morou por algum tempo. Desde que ele se mudou, nunca mais conheci ninguém que lá tenha se estabelecido.

Passado um tempo, quem lá morava mudou-se novamente e, não sei exatamente porque, ninguém mais habitou as casas gêmeas. Ao longo dos anos que se seguiram, elas foram aos poucos sendo depredadas. Começou com uma janela quebrada, depois uma porta arrombada, o portão de ferro roubado, deixando parte do muro danificado. Por um tempo ainda serviram de abrigo para moradores de rua, até que a falta de telhas – roubadas também – impossibilitou até que para isso tivessem serventia.

Agora, só havia restos de vidro das janelas, algumas madeiras quebradas, e bastante lixo. Nunca soube quem seriam os donos das duas casas, mas o fato é que eram as únicas da rua destoando das outras que, apesar de simples, eram todas bem cuidadas. Não demorou para que a criançada começasse a falar de histórias de fantasmas...alguns meninos juravam que, à noite, um vulto perambulava pelos cômodos, aproveitando a pouca claridade que chegava da rua. Eu, já adulto nesse ponto da história, pensava tratar-se apenas da imaginação fértil das crianças. Apenas ruínas, era em que as duas casas haviam se transformado afinal.

Meu primeiro emprego formal finalmente se deu por intermédio de um amigo. Assim, comecei a trabalhar na mesma empresa em que ele trabalhava, porém em turno contrário ao dele, visto que a empresa – que fabricava embalagens de vários tipos – funcionava 24 horas por dia. Voltava para casa sempre bem tarde, e naquela ocasião já havia passado da meia-noite. Era uma noite fria, e a neblina estava muito fechada. Às vezes ouvia passos, mas a visibilidade estava tão comprometida que ninguém podia ser visto, a menos que muito de você se aproximasse. Eu estava a pé.

Já pensava no banho e café quentes que apreciaria dentro de instantes, quando passo em frente às duas casas abandonadas. Lembro imediatamente das histórias das crianças da rua, e até sinto vontade de rir, pensando em quanto eu também acreditei em coisas sobrenaturais enquanto moleque. Ainda não sei exatamente o porquê, mas acabei voltando-me para uma delas - a que se encontrava, digamos, em pior estado - e enfim adentrando pela abertura que um dia ostentara um portão. Tive bastante cuidado para não pisar em algo que pudesse machucar, uma tábua com pregos, algo do tipo, e quando me dei conta já estava no meio do recinto destinado a ser a sala. O chão estava molhado pela umidade da noite e, nas paredes, mesmo no escuro, era possível perceber marcas de vandalismo. No meio da sala, no que eu chamaria de uma poltrona em carcaças, havia um homem sentado, tranquilamente, olhando-me com indiferença. Também permaneci indiferente...curiosamente, não me assustei ao vê-lo, nem me perguntei o que estaria fazendo ali. Aproximei-me e percebi que se tratava de alguém de certa idade, bem vestido, e a maneira como se sentava demonstrava certa elegância. Ele vasculha com as mãos os bolsos do terno até encontrar o que procurava: uma carteira de cigarros. De lá, retira um e o acende com um isqueiro, que teimou por instantes em não funcionar. Ele traga a fumaça, voltando o olhar para o teto. Então, estende as pernas e as posiciona confortavelmente sobre a mesinha que ocupava o centro da sala. Percebo um movimento a minha direita e direciono o olhar para o ambiente que parecia ser a cozinha. Alguém – uma mulher - está em pé em frente ao fogão, observando algumas panelas. A mulher então volta o olhar em minha direção, também com indiferença, e vai até a geladeira, abrindo a porta e retirando de lá algo que não sei dizer exatamente o que seria. Novamente volto o olhar na direção do homem, que continua pacientemente fumando seu cigarro. A vontade de explorar a casa aumenta, a medida que as novas personagens vão surgindo. Caminho até o que seria um quarto, e me deparo com um jovem deitado em sua cama. Ele aparenta ter uns 14 anos, e segura em suas mãos um livro, título do qual não consigo identificar. Por um instante, ele interrompe a leitura e me olha, com a mesma indiferença com que os outros o fizeram. Fala algo que não compreendo, mas não sinto desejo de pedir que repita. Continuo minha caminhada em exploração à casa. Durante o trajeto, um menino de uns 6 anos passa correndo e quase me atinge. Passado o susto do quase encontrão, percorro um corredor de uns 5 metros de comprimento e adentro o cômodo da porta à direita, visualizando, agora com perfeição, todo o seu interior: Uma cama, impecavelmente arrumada; um criado-mudo, sobre o qual posso ver um rádio-relógio; um armário com duas portas, sendo que uma delas encontra-se semi-aberta; alguns pôsteres embelezam as paredes. Consigo reconhecer, entre eles, várias bandas que costumava ouvir. Enquanto ainda pensava nas bandas, percebo que um conjunto pijama se encontra caprichosamente dobrado sobre a cama. Então, caminho até a janela veneziana, fecho-a com o cuidado de garantir que esteja devidamente trancada, como era de hábito. Retiro a toalha que mantinha em volta da cintura, coloco o pijama, e me deito sob os cobertores, esperando que a noite seja melhor do que a anterior, quando sonhei com casas supostamente mal-assombradas.

Sérgio Kuns
Enviado por Sérgio Kuns em 30/08/2015
Reeditado em 21/10/2015
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