Vô de mangas

O Zé do Vô, desse povo dos Chocho, com o avançar dos anos, virara Zé Vovô. Rosto escalavrado, nariz ponteagudo, barba por fazer, cabeça quase raspada, davam-lhe a compostura de quem nascera com a República, ou ainda sob o cetro imperial de Pedro, o Segundo.

Sem ter tido papel preponderante na política da Velha e orgulhosa Serrana, porém, dedicou-se a cuidar do quintal, que hoje já não era mais do que uma sombra daquele passado de paz e abundância. Os filhos se haviam casado e se arranchado - à exceção do caçula Zemaria - e, com sua Dona Lóia, é que Zé Vovô vivia.

E com suas mangueiras, que abatumadas, chegavam a escurecer o quintal. Mas continuavam a produzir seus frutos. Que o Zé Vovô botava naquele balde enodoado, um tanto amassado, e saía a vender nas redondezas do Beco dos Canudos, onde morava e a apenas uma rua abaixo do nosso Beco sem-saída, em rua ainda por ser convertido.

As mangas do Zé Vovô não eram nada apetitosas e, invariavelmente, ou machucadas, ou de maduro passadas. Além de fibrosas. Chegamos a comprar umas poucas vezes, não sei se pelo preço da fruta ou pelo apreço à sua luta.

Manga boa é fresca. Chupada ainda em meio à trepada, logo que apanhada. Qualquer moleque sabe bem disso. Mas o Zé Vovô, que nada disso mais devia fazer, contentava-se em chuchá-las com vara comprida. [Ao que consta e não se conta, até o Pelé veio a imitá-lo depois nessa conjugação, de forma mais que verbal, só que o fazia sempre com xis. Xis da questão?].

E ao caírem, pela chuchada ou por ventania danada, as mangas do Zé Vovô ainda corriam o risco de rolar pro corgo, o Baiacu. Justamente aquele que passava no fundo de seu quintal e pra onde convergiam os esgotos da cidade. Será que ele ainda as pescava, ou quem sabe, sumo sacrilégio, ainda ali as banhava?

Nunca viemos a saber, mas deixamos de comprar, pra ficar só no especular. E no entanto, ele tampouco deixou de vender, ou de tentar. Tinha que compor o magro estipêndio que lhe haviam de dar os filhos, eles também apertados com suas proles e outros enroles.

Mas seu maior prazer, aparentemente, era quando achava um prego ou parafuso, torto e enferrujado pelo meio da rua, e daquele jeito tão nasalizado, mandava pro balde, lamentando o desperdício alheio, ainda que então de vida, seu bem e meio.

Jamais embalde...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 06/08/2015
Reeditado em 24/02/2022
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