O HOMEM IMAGINÁRIO

"O homem imaginário

vive numa mansão imaginária

rodeada de árvores imaginárias

à margem de um rio imaginário.

Nas paredes, que são imaginárias

estão pendurados antigos quadros imaginários

irremediáveis gretas imaginárias

que representam feitos imaginários

ocorridos em mundos imaginários

em lugares e tempos imaginários..."

(Nicanor Parra, poeta chileno, "O homem imaginário.)

Quando completou 66 anos, Samuel fez uma descoberta importante e dolorosa: era um homem imaginário.

Descobrira que assim que começou a tomar consciência da sua existência, na infância, teve que inventar ser outro, visto que não se encaixava na realidade.

Para atingir esse mister, tivera auxílio de muitos, embora esses mestres não tivessem consciência plena de que estavam a ajudar construir um homem que existisse só na imaginação.

Respeitar a Deus sobre todas as coisas.

A mãe ajeitou-lhe a roupa branca, aos sete anos, calças curtas, camisa de mangas compridas e uma gravatinha borboleta prateada.

Ficaria bem na foto, segurando a hóstia da primeira comunhão.

E a cerimônia, a foto, a festa, selaram para sempre seu caráter imaginário, religioso cristão, embora essa personalidade com o tempo se tornasse difusa, tornando-o cristão apenas para a estatística.

O diploma de alfabetização, quando aprendera escrever lições ditadas por gerações.

Ser útil à sociedade.

É a utilidade, que nivela o homem ao animal.

Aceitou que assim fosse, que lhe moldassem a imagem, desprezou a liberdade de ser a si.

Por aceitar, ficara bem na foto ao lado do professor, a

simular entrega do diploma.

(Descobrira depois, ao sentar na platéia, que era apenas um canudo de papel; o diploma verdadeiro deveria ser retirado na secretaria da escola!).

Receberá na presença de todos uma imaginação e uma fraude.

Servira, depois, o exército, imaginando agradar a todos ao jurar promessa de dar a vida pelo Pátria e para defender interesses de nunca lhe foram verdadeiramente revelados.

Muitas outras simulações vieram com o desenrolar da vida, a moldar-lhe o caráter e a própria imagem, a torná-lo outro, embora nunca, talvez, tivesse deixado de ser ele próprio.

E esse próprio, porém, só na imaginação.

"Eu que desejei ser outro;

ser um homem de livros e ditames;

na vida fui caindo no barro de moldar;

a desejar voltar ser aquele outro,

que veio ao mundo um dia para ser exclusivo,

e fazer a diferença,

desejo, esse, de inexplicável júbilo...

secreto!."

Foi então, depois de tanto tempo,

depois de tantos acontecimentos,

que ao comemorar sessenta e seis anos

e a aposentadoria,

se deu conta de que era apenas uma figura

na imaginação dos outros.

A realidade socorreu-lhe quando Saraiva interrompeu a festa batendo com o garfo numa taça:

"Atenção..., atenção...!"

"Obrigado pelas presenças..."

(não disse que, se não fosse o churrasco e a bebida, talvez não houvesse ninguém),

"...estamos irmanados nessa reunião..."

(e o Saraiva passou-lhe o braço direito no ombro e puxou-o para si, simulando amigo legal, coisa que só seria possível na imaginação)

" ...para celebrar o aniversário e aposentadoria do Samuel.

E afastando-se um pouco, para encará-lo, não ao homem, mas a imagem que fizera dele jactou-se:

"Emérito confrade...

preclaro amigo de trabalho...

eminente funcionário da controladoria...

Ilustre...

figura ímpar no ambiente de trabalho..."

"Nessa noite memorável...

por nímia gentileza da comissão

presto-lhe estas homenagens...

para gáudio de todos nós..."

"...quis a excelsa bondade dos meus ilustres pares ...

que fosse eu, o menos credenciado entre todos ...

consignar-lhe possuído de incontida emoção...

dizer-lhe..."

"...vós que acabaste de completar sessenta e seis anos...

e de vitoriosa carreira de sucesso...

obra meritória digna de calorosos aplausos...

e entusiásticos louvores...

na luta incansável pela dignidade...

integridade e honra..."

"havereis de conservar lembrança...

de exemplo edificante no dia a dia...

plenos de virtudes, dignidade, bondade, doçura...

incansáveis labores em prol de justas inspirações...

e memorandos; etc, etc, etc..."

E sob esse blá, blá, blá, mantra de venerável feiticeiro a lhe descortinar a realidade, que Samuel se deu conta de que na vida fora imaginação...

Percebera naquele instante,

ao despir-se da utilidade.

Moveu-se afastando-se do orador, de ré e de frente para o público, hipnotizado pelo imaginário...

E a cada passo que retrocedia

ia se tornando real,

concreto como um saco de cimento,

a tal ponto que deixou de ser visto.

Na porta cruzou com um retardatário a lhe perguntar:

____ Quem está sendo homenageado?

Respondeu de pronto:

____ Não sei, mas com certeza não sou eu...

E perulitou-se saltitante, sem olhar para trás.

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Se você é aquilo que tem,

se você perde o que tem,

o que você é?

Obrigado pela leitura.

Sajob - agosto/2015