Confortável torpor
Acordo suavemente com o que pensava ser meu nome sendo repetido, pelo menos, umas três vezes. Parecia uma voz vindo de muito longe, mas logo percebo tratar-se apenas de um compressor de ar, daqueles usados em pintura de carros. Investigo o ambiente ao meu redor, sentindo meu corpo dormente, como que parcialmente anestesiado. Na parede do quarto, uma tela emoldurada, na qual uma paisagem espera por ser concluída. Por que diabos coloquei numa moldura um quadro inacabado? Sem conseguir me mover, e até onde meus olhos alcançam, consigo perceber que estou deitado em minha cama, usando apenas calças jeans. A temperatura está bastante alta, o que só faz aumentar a sensação de torpor que toma conta do meu corpo. Estranhamente, sinto-me bastante confortável naquela situação. Percebo que há algo sobre meu peito, braços, ombros e cabeça. Uma vez que não consigo me mover, peço ajuda ao espelho que fica na porta do guarda-roupas para visualizar que, sobre o meu corpo caminham, tranquilamente, pequenas aranhas, talvez dezenas delas, ou uma centena. Em nenhum momento sinto alguma fobia, algo que me deixa bastante surpreso, visto que sempre tive repulsa por essas criaturas, mesmo as sem peçonha. Para ser mais exato, me sinto muito confortável naquele instante. Algumas se encontram no meu pescoço, outras sobem pelo meu rosto, vasculham as cavidades das minhas orelhas e nariz, assim como os olhos. Ao longe, o compressor continua ativo. Subitamente, uma sensação ruim toma conta da minha mente e, de alguma forma, eu sabia que nenhuma relação tinha com as aranhas. Ouço um ruído bem próximo da minha cabeça, e consigo perceber que, na janela aberta atrás da cabeceira da cama, pousara um pequeno pássaro preto, semelhante a um corvo, mas talvez um pouco menor. Nunca entendi de aves e, portanto, não saberia dizer de que espécie se tratava, afinal. De alguma maneira, eu antecipava o que aconteceria, e isso de alguma forma me desagradava. Como previra, a ave salta ao lado do meu corpo e, tranquilamente, começa a devorar as aranhas, uma a uma. Era uma ave de porte pequeno, e acredito que todas aquelas aranhas, se agrupadas, formariam um volume muito maior que o próprio pássaro. No entanto, inexplicavelmente, a ave vai engolindo uma a uma, desde as que estavam sobre meu rosto, até aquelas que se encontravam cobrindo minhas pernas e pés. Testemunho tudo sem concordar, porém incapaz de intervir. Não consigo entender o porquê do meu desagrado, já que a figura de um pássaro sempre me pareceu muito mais amigável a de uma aranha, o que dirá dezenas delas... O pássaro continua sua empreitada, lentamente, enquanto o som do compressor continua latejando em minha mente, até que o último aracnídeo é devorado. Assim que a refeição termina, ele salta novamente até o beiral da janela e, finalmente, alça vôo, levando consigo minha reprovação. O torpor parece continuar, assim como o compressor que não cessa. Numa das paredes do quarto, uma tela emoldurada expõe uma paisagem aparentemente inacabada, e que eu sabia jamais o faria.