A Liberdade de uma Escrita que Fala
Este não é o começo, o meio ou o fim de algo. Talvez seja um “isto” que antes de ser “isto” se apresenta como um desejo de fala. A gestação de uma escrita. Dizeres cambiantes que toca, pulsa e vibra na angústia dos desesperados. Um grito multiplicado em torno, em cima, em baixo, dentro e fora de tudo. E permeando os meios, caminha. Segue sentindo o esforço do nascimento e da angustia das palavras.
Ainda desmoldurado na gravidez inocente, desenhado nas imagens de uma solidão nova, isso que ainda não sabe o que é, destrói, plastifica e aceita de bom grado a dor do seu parto.
O nascimento estranho feriu as palavras. E o desejo de fala, também machucado, chora o nascimento da escrita. Choro que mostra o fim do silêncio e a chegada inesperada de um “isto” que ainda não sabe o que dizer.
A escrita caminha.
Andando olha a luz que sai da janela do prédio. A escrita desejou falar daquele brilho que viu. O que diria sobre a luz que ainda não foi dito no mundo? Na janela, o sorriso da criança que olha a chuva cair é de uma beleza que alegra o peito só de olhar. O que também diria sobre isso? Ela própria não compreendia o que via. A escrita decidiu não falar sobre aquilo. Dizer das coisas antes de compreender as coisas é mentir, falsear, calar-lhes a boca. Isso não parece atitude honesta.
O mundo chegou à escrita dentro de uma caixa que guarda a revelação dos mistérios de tudo que é; de tudo que foi e de tudo que será. A escrita não gostou. Sentiu o peso da responsabilidade e da culpa por não desejar revelar os mistérios do mundo. Ela sabe que a caixa precisa ser aberta, mas escolhe seguir sem retirar a tampa. Decide sair à procura do mundo que a caixa não guarda.
A escrita caminha com sangue nos pés desejando escrever a palavra não dita; aquela que perdida na fala e sem o registro da caneta, entrou na pele do mundo, e este, sentindo-se invadido, encolheu os sapatos da escrita. Claro que percebendo a façanha do mundo, a escrita não desiste. Caminha descalça.
Um pé machucado de uma escrita que fala, não é um pé qualquer. É imagem de bravura e coragem que segue caminhando mesmo sem ter sapatos que lhe cabe. É liberdade que rasga o chinelo, quebra o salto e, se preciso for, come as meias do mundo.
As meias do mundo no estômago da escrita é comida inútil. Sua fome não é saciada com casca de pano. O seu alimento é tudo aquilo que tá na cara do mundo e que o mundo não enxerga porque só percebe coisa explicada. A escrita não quer apenas explicar, ela quer existir.
A falsidade da cópia que dá título de verdade é o que agrada o mundo. Um mundo xerocado, repetido e mastigado que corre atrás do próprio rabo. Que valor isso tem?!
Escrever não é fala forçada e não é canto sofrido. É costura de letras que grudadas no papel dão impulso ao seu próprio vôo. É sair pelas veias da vida abrindo o fechado pra dizer o não dito, e no movimento dos corpos criar possibilidades de mundo.