SURPRESA AMOROSA

Existem inúmeras e variadas formas de se contar uma história e esta que vou utilizar poderá parecer, à primeira vista, um tanto grotesca e superficial, mas não o é. E o leitor poderá assegurar-se disso se decidir-se a lê-la de forma abstraída, sem afetação; como se estivesse a passear os olhos sobre as linhas de uma correspondência rara, de alguém que há muito tempo não manda notícias. A fidelidade é muito discutível nos dias de hoje. Criou-se, em quase todas as mentes, a concepção, a meu ver, errônea, de que é infalível a traição; de que é impossível ou antiquado viver-se eternamente ao lado da mesma mulher e dedicar-se a ela, somente a ela, de corpo e alma, compartilhando exclusivamente com ela as palavras de amor, os segredos de alcova e os momentos de sexo. A facilidade com que se trai e o encobrimento do ato têm feito da rotina de inúmeros casais não mais do que um esforço para manter as aparências, um cumprimento dos ritos, um apego às formalidades impostas pelo padrão social.

Para Alberto, mulher é somente um objeto cuja utilidade não vai além de proporcionar prazer ao homem além de servi-lo em toda e qualquer situação; não via outra função no sexo feminino. Segundo o seu ponto de vista, as mulheres não têm inteligência, são sentimentais ao extremo e facilmente levadas pela perspicácia e pela sutileza do homem; este, sim, seria o sexo da força e da dominação. Dentre os colegas de repartição de Alberto, havia Sidney, que não aceitava como os outros tais opiniões machistas e vivia a repreendê-lo com veemência.

– Você nunca esteve apaixonado, já se vê. No entanto, meu caro, nenhum homem será digno do amor verdadeiro de uma mulher se não tiver puro o seu coração. Digo a você, não há intuição mais acertada do que aquela que parte do coração feminino. Elas não vêem com os olhos, não pensam com a cabeça. Podemos, sim, enganá-Ias o quanto quisermos e elas farão vista grossa, sofrerão caladas e fingirão estar felizes ao nosso lado em nome de um compromisso religioso, para o bem dos filhos e de sua própria reputação. Mas, creia, nunca mais serão as mesmas. E tolo e insensível é o homem que não percebe isso.

-Você fala assim baseado em filosofia, meu caro Sidney, e não em experiência própria. Todas as mulheres são iguais no que se refere ao amor, não há diferença entre a branca, a negra, a madame da alta sociedade ou a pobretona: nunca resistem a uma boa cantada. Caem feito uma pena na lábia do homem que estiver disposto a conquistá-la; e não é preciso dinheiro nem aquele carro do ano, basta um pequeno entendimento da psicologia feminina.

– De onde foi você tirar essas idéias repletas de machismo e presunção, meu amigo?

– Não é machismo nem presunção. Eu, sim, falo de experiência própria baseado no muito que aprendi em minhas saídas noturnas em busca de mulheres. Elas não dizem “não” em hipótese alguma. É preciso ler em seus olhos, mergulhar na sua psicologia. Quando dizem "não" estão querendo dizer "talvez" ou um “quem sabe?". Quando dizem "talvez” você pode considerar certa a conquista, pois isto significa “sim” para o amor. Esta frase me fez precaver-me contra aquelas que dizem "sim” no primeiro encontro. Estas eu deixo para aqueles que se dizem entendedores no assunto, mas, na verdade, nada sabem; pessoas como você, por exemplo.

– Aí é que você se engana, caro Alberto. Posso parecer a você um filósofo do amor, alguém que estudou o coração das mulheres através da literatura de ficção e aprendeu com as experiências dos apaixonados. Assim, estaria eu repleto de teorias, carregado de lições que a vida de terceiros me ensinou. Sem dúvida, passaria por um professor requisitado e merecedor de todo respeito, mas não é este o meu caso. Não sou um vendedor de experiências alheias, pois vivi as minhas próprias experiências e são essas que procuro passar aos que desejam me dar ouvidos.

"Marina não é a primeira mulher na minha vida, mas será, com toda a certeza, a última. Posso afirmar isto com toda a convicção da minha alma. Ao seu lado conheci o verdadeiro amor, mas não foi sempre assim e, se volto ao passado, é para extrair dele as lições que a vida me deixou; sinto-me hoje fortalecido contra as paixões do mundo que tanto fazem sofrer os incautos. Se quiser conhecer a minha decisão, ouça-me e depois diga se concorda ou não comigo.

“Gastei grande parte da minha juventude em flertes e badalações. Achava que entendia o coração feminino e, conquistar uma mulher era para mim tão fácil e natural quanto dirigir um automóvel. No começo dá aquele nervosismo e uma sensação de insegurança nos diz que não conseguiremos ir adiante. Contudo, ultrapassada essa fase sentimo-nos totalmente donos da situação e não há obstáculo insuperável É assim que me sentia em relação às mulheres e considerava incapazes e antiquados os amigos que viviam frequentando as boates noturnas, em busca de mulheres públicas. Como podiam pagar para fazerem sexo se existiam mulheres sedentas de carinho a espera de uma proposta um pouco mais ousada?

“Aos vinte e um anos eu já era uma pessoa independente e podia fazer da vida o que bem entendesse. Não exagero ao dizer que escolhia a mulher para sair. Possuía, num dos melhores recantos da cidade, um apartamento aconchegante, meu ninho de amor. Desfrutei ali momentos inesquecíveis, paixões avassaladoras. Mulheres deslumbrantes caíam apaixonadas após deixarem as suas marcas, seus cheiros e suas declarações amorosas em minha alcova. Ao relembrar tudo isso me bate a saudade de um relacionamento em especial; e é sobre ele que quero falar.

"Conheci-a na noite, mais especificamente, em uma festa de casamento que se estendeu muito além do horário habitual. Quando se encontravam os noivos longe, há quilômetros de distância, a caminho de sua lua de mel. Eu fora convidado por um amigo da família, meu colega de faculdade. Não me vi bem à vontade, senão muito depois da meia noite e de uns copos a mais de bebida. Um baile, iniciado para manter a animação dos convidados e dar fim ao excesso de comes e bebes, foi outra razão para prender-me ao local. Mas, o que eu queria mesmo e, por isso, não arredava pé, era aproximar-me de Dalva. Não havia jeito, estava sempre rodeada de pessoas interessantes como ela, e eu, um desconhecido, um quase intruso, não queria arriscar-me a uma gafe.

“Consegui finalmente alguns segundos de prosa. Éramos não mais do que uma dezena de convidados pelos cantos do salão, cada um procurando, a sua maneira, desacelerar para em seguida despedir-se e sair. Dalva sentara-se em uma das cadeiras ao lado do que fora, horas atrás, um enorme bolo de noivas, rodeado de guloseimas e não passava agora de bandejas e pratos vazios e espalhados de qualquer jeito. Em seu vestido branco de noite, cruzava as pernas morenas torneadas e distraía-se com um cigarro; parecia feliz e despreocupada. Não sei por que, mas tinha a impressão de que Dalva já sabia do meu interesse por ela e, por isso mesmo, ainda não se ausentara. Prova disso era sua permanência no local depois da saída de todos os seus amigos.

“Sempre tive como estratégia, ao interessar-me por uma mulher, não me aproximar dela até que a veja só e receptiva e, no caso de Dalva, estava ali o momento ideal. O que pareceu, à princípio, uma conquista fácil, uma a mais para a minha vasta coleção de mulheres, reverteu-se em árduo exercício; algo que nunca imaginara enfrentar, uma barreira quase intransponível cuja resistência me deixava ainda mais louco e apaixonado. Realmente embarquei na sua ardente simpatia. Sentei ao seu lado e pus em prática minha técnica, mas não precisei me esforçar, pois fui correspondido além do que esperava. Não vi o tempo passar naquela noite. O encanto de Dalva inebriou-me. Considerei certa a vitória final quando aceitou o meu convite para levá-la em casa em meu automóvel e exultei de alegria quando, confessando-me morar sozinha, ofereceu-me um café quente e bem forte, preparado por ela, pois afastaria o sono e a ressaca de uma noite de excessos.

“Não poderíamos ter passado momentos mais agradáveis. Parecíamos tão vivos e cheios de energia como se acabássemos de despertar de longa noite de sono e, no entanto, a manhã, quase finda, ainda nos via animados, interessados um pelo outro, esgotando assuntos. Mais de uma vez tentei aproximar meus lábios dos seus, com vagar, na lentidão do amor, embora buscasse o máximo de auto controle para não expressar minha fome de beijos, de afagos, de sexo. Certamente poria tudo a perder se agisse pelo instinto. Não sei se Dalva percebeu a minha intenção. No meu entendimento e baseado em minhas experiências anteriores, todas coroadas de êxito, eu estava na marca do pênalti, com a bola a minha frente e não havia goleiro, ou seja, nada que me impedisse a finalização do meu intento. Mas, Dalva recusou o meu beijo. Esta primeira derrota não me abalou, mas vieram outras naquele e em outros dias e em outras visitas à casa de Dalva. Porém, namorávamos, no sentido tradicional do termo; e era isso mesmo: namorados que se beijavam, iam aos espetáculos e se despediam à noite; Dalva não me deixava dormir em sua casa. Meses assim se passaram até que não mais suportei e tomei uma decisão.

– O que quer de mim, afinal? – indaguei-a.

– Tenha um pouco de paciência, eu te peço. Não me sinto preparada, ainda.

– Você é virgem?

– Não, não é isso.

– Estou perdidamente apaixonado. O que está fazendo comigo? Não consigo aproximar-me de uma mulher e, no entanto, estou carente. Só posso dizer que seus beijos me enlouquecem. Não consigo... não consigo mais...

– Também sinto o mesmo. Amo você, acredite. É que...

– Como pode ser tão insensível, tão egoísta?

Dizendo estas palavras, corroído pela frustração de não ter Dalva em meus braços como mulher, por inteiro, da forma que todo homem apaixonado deseja, virei-lhe as costas e deixei-a, decidido para sempre, abandoná-Ia. Bati a porta atrás de mim abafando seus gritos e suas súplicas. Desci revoltado as escadas do prédio, ouvindo meu nome sendo clamado em desespero, mas não cedi. Durante dias, semanas, remoí aquela tarde de sábado em que saí da casa de Dalva resolvido a não vê-Ia jamais.

"Segui a rotina de minha vida sem uma notícia, sem um telefonema sequer da mulher que eu amava, da minha ex-namorada. Por um lado, sofria a separação, lamentando a perda a que eu mesmo me impus. Mas, por outro lado, sentia alívio de uma tortura que estava me consumindo. O grande problema é que a experiência afetou meu jeito de ser. Se com Dalva e por causa dela, perdera o interesse por outras mulheres, como, se visse nisto uma prova cabal de amor e de fidelidade, agora, sem ela, meu, entusiasmo de antes, o Don Juan que havia em mim, desvaneceu-se de vez e eu entrei numa fase inédita da minha vida, que julgava ao ser humano, enquanto sexo masculino, totalmente impraticável. Mas soube, por experiência própria, ser perfeitamente possível tal estado. Sempre considerei a vida de alguns religiosos um exemplo de disciplina e renúncia aos prazeres mundanais. Mas, daí a dizer que eles passam pela vida completamente castos em relação às práticas sexuais vai um exagero que jamais me convenceu.

"O mesmo já não acontece com as mulheres. É tão fácil e natural para elas absterem-se do sexo quanto de um tipo de alimento que, a conselho médico, teve que ser abolido. No meu caso particular, deveria amargar enorme sofrimento por ter sido a mudança radical e repentina e, se for levada em conta a vida que eu levava antes de conhecer Dalva, não passava uma semana sem conhecer uma ou duas mulheres, ou até mais. E de fato, à medida que o tempo passava, os efeitos da continência começaram a se tornar perceptíveis aos que conviviam comigo. Os que conheceram Dalva e que sabiam ser ela a razão da minha mudança enchiam-me de conselhos, pois, na opinião deles, uma mulher, por melhor que fosse, não vaIe tal sofrimento; havia outras, muitas outras, e eu esqueceria facilmente o passado se ao menos me desse uma chance.

"Comecei a sair por insistência; era levado a festas, clubes e outros eventos e apresentado a mulheres, mas, como eu estava mudado! As pernas tremiam e a voz não saía e eu, tal qual um adolescente virgem, sem saber o que fazer, me via perdido e só. Tentaram o que eu abominava, mas que seria a solução para o meu caso: as prostitutas. Contudo, eu parecia um caso perdido. Compartilhava a companhia, o sorriso e as bebidas dessas mulheres, mas não passava disso: chegado o momento, eu falhava, melhor dizendo, sequer tentava dar início ao ato.

– Não sabemos mais o que fazer com você – foi o desabafo de um dos meus amigos. – No entanto, temos ainda a Tati, esta vai levá-lo à loucura, impossível resistir aos encantos desta mulher. Uma vez conhecendo-a não mais vai querer saber de outra.

– E quem é essa Tati, onde mora?

– Não sabemos onde mora, mas que importa isso? Sabemos onde trabalha e isto é mais do que suficiente. Foi o Farias quem me apresentou. Vivia me dizendo não haver mulher melhor para umas horas de cama do que a Tati. À princípio achava-o mentiroso, mas hoje concordo com ele: ela é mesmo de endoidecer.

"A curiosidade, mais do que o desejo, me fez também conhecê-la, tal o entusiasmo dos meus amigos. Entramos na casa, havia pouco movimento, algumas meninas ali estavam reunidas no salão principal. Não vi nada de especial em nenhuma delas, mas Tati não estava presente.

– Farias chegou antes de nós e preparou o ambiente. – disse um dos meus amigos. – Pedimos a Tati que o recebesse de uma forma toda especial; já está em um quarto do segundo andar e o aguarda.

"Não subi de imediato, precisava beber alguma coisa. Quase uma hora depois e leve pelas bebidas que me ofereceram, subi finalmente. E ali estava ela, bela, deslumbrante, nua, sobre um acolchoado azul e branco, a me sorrir, Tati, pseudônimo profissional de Dalva, a Dalva que eu sempre quis, tão difícil e misteriosa e, agora, disponível publicamente.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 14/07/2015
Reeditado em 15/07/2015
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