Nosso automóvel
Ficava guardado na gaveta única do armário amarelado de quarto de papai e mamãe, junto com os documentos da família, e até os umbigos curados nossos.
E eu só o vi uma vez, aquele automóvel azul, em gravura de fundo branco, possivelmente um Ford ou Chevrolet modelo fins dos anos quarenta ou começo dos anos cinquenta. Mostrou-mo mamãe, numa tarde qualquer, mas pressurosa e esperançosa aquela mulher.
Havia uns escritos, uns números no papel, mas o que se destacava era o seu perfil anil, com os pneus de bandas brancas. De qualidade, o papel era sofrível, e pode ser que o automóvel não fosse novinho
senão na folha.
Mas se somente a idéia de andar de automóvel, ou ver um passando por aquelas singelas ruelas já dava comichões, imagine-se o que era ser dono de um? Com papai choferando, então, rádio ligado, mamãe ao seu lado...
Era uma rifa ou loteria, explicou-me paciente mamãe que o papel me lia. Acho que chegou a me pedir para rezar para que tivéssemos aquela sorte, ou a iniciativa me partiu da própria cachola de criançola.
A sorte foi bater noutra porta. Também o papai nem choferava. Mas será que conferimos direitinho o número do papel com o da loteria?