A Bíblia

- Eu estava bem próximo quando tudo aconteceu.

Sinalizei para Vladimir o grupo de roseirais que passou a nos circundar assim que descemos as escadas do prédio antigo que continha a biblioteca.

- Veja você mesmo – acrescentei -, pode perceber algumas flores amassadas pelas pisadelas do acusado.

Há dias tentavam, infrutiferamente, descobrir o responsável pelo roubo da obra. Já não víamos o senhor Ananias desde que ali chegamos. Na condição de porteiro e amigo é quem poderia nos colocar melhores detalhes do que ocorreu. A chuva intentava pegar-nos de cheio caso não saíssemos dali naquele exato momento. O céu, enfarruscado por terrível e repentino escurecer, dava-nos a impressão de um final de dia, enquanto mal transcorriam as horas de um entardecer promissor. Jamais imaginávamos chuva ou qualquer tipo de precipitação. Logo após minha fala rompeu-se no ar o som abafado do guarda-chuva automático de Cláudio, meu fiel e obediente motorista. Sem perda de tempo e já sentindo a friagem arrebatando meu corpo delgado, meti-me ali em baixo e ganhamos a rua.

- O senhor viu o estrago que ele fez no jardim? – dirigiu-se dessa forma a mim o meu motorista. Andávamos quase grudados um no outro por causa dos pingos que vinham inclinados como se mirassem em minhas costas, obedecendo a direção do vento.

- É claro que vi. Afinal, quem te mostrou a cena? Nem sequer uma palavra ao chegarmos em casa! Não quero que Mariana de longe desconfie que não entreguei o livro. Como iriamos esperar quase 1 hora até ganharmos o salão? E você sabe que nunca cumprem o prazo que é prometido quando se trata de serviços públicos nessa cidade.

- Acho que em qualquer cidade do nosso país e não apenas nesta. Mas, enfim, o senhor não vai passar no mercado?

Esqueci-me, momentaneamente que tinha que comprar ovos para o lanche da tarde. Atravessamos para o outro lado da calçada, dispensando o guarda-chuva, já que ali marquises abundavam e seguimos caminhando, agora menos tensos e mais felizes. Eu, pelo menos. Imagina a cena em que dois barbados quase se abraçam, namorando a chuva.

- Olhe!

A estas palavras de Cláudio por pouco não ganho uma torcedura ao mover, rápida e ansiosamente o pescoço.

Ao fim do calçadão, a mais ou menos cem metros de nós, uma multidão se manifestava. Haviam descoberto o invasor e gatuno de bibliotecas. Apressamos os nossos passos; até trombávamos contra quem nos impedia o caminho. Aqui era uma praça, arborizada. Não muito grande. Uma meia dúzia de bancos de madeira a circundava e as árvores se perfilavam por trás dos bancos, galhudas, imponentes como daquelas que embelezam os jardins oficiais da minha cidade. Eu nasci e fui criado no Rio de Janeiro, embora morasse em uma pequena vila interiorana de Minas Gerais. Isto por opção mesmo. Mas são detalhes que não têm a ver com a nossa história. Vamos adiante, então.

Como eu dizia, chegáramos à praça, mas o que nos interessava se fora. Foi muito rápida a cena. Pelo que fiquei sabendo. Interpelaram o indivíduo suspeito que, logo em seguida, caiu em contradição e devolveu às autoridades o livro intacto, do jeito que o havia surripiado.

- E de que livro se tratava? – perguntei assim a um velhinho, apegado a sua bengala branca, pronto a deixar o banco que o descansava.

- A bíblia – ele me respondeu seca e distraidamente. E seguiu para fora da elegante pracinha.

- A bíblia!? – exclamou aparvalhado Cláudio, encostando-se a mim naquele momento.

Já estávamos no hall do prédio onde morávamos. Mariana devia estar em seu momento de sesta e não iria nos importunar, caso continuássemos nossa exposição duvidosa do que teria levado alguém a roubar, de uma biblioteca, em meio a livros raros e cobiçados, uma humilde bíblia.

Depus sobre a mesinha de centro da sala o meu chapéu bastante umedecido e fiz Cláudio acompanhar-me até nossa biblioteca.

- Ouça, Cláudio. Você tem que me prometer que não vai relatar nem uma palavra do que acaba de presenciar a mariana. Você me promete isso?

Vi meu motorista torcer o nariz de estupefação e curiosidade.

Sentávamos, frente a frente a minha mesa de estudos. Por trás de Cláudio as estantes abarrotadas de minhas predileções literárias.

Para abafar o ciúme intenso, sem chegar a ser corrosivo, de Mariana, procuro evitar toda e quaisquer espécies de atitudes que possam deixar mesmo rastros de suspeitas, obviamente infundadas, pois que a amo e jamais trairia sua confiança. Só que Jamile, nossa babá e protetora de nossos pequeninos tesouros resolveu ter comigo aulas particulares de música, porque domino essa arte, e o quis dentro da biblioteca por ter, segundo ela, mais privacidade e uma acústica mais do que perfeita para este fim. Difícil foi convencer Mariana que só permitiu pela enorme afeição que tem à menina. Tal vem a ser a índole pura e inocente de Mariana que nos deixava ali, às vezes duas horas seguidas sem nos importunar em nada. Quantas vezes não se ausentou para o mercado como se não existisse aquela situação; é por isso que a amo mais a cada dia.

“Te espero amanhã a mesma hora. Durma com Deus”

Quando lancei esta frase em forma de bilhete e o coloquei entre as folhas do livro dos livros, entregando-o a Jamile como recado para a nossa próxima aula jamais imaginei que aquele fosse parar na biblioteca de Ouro preto onde esse fato ocorreu. Jamile, necessitada, vendera o livro que, dias depois, foi roubado e devolvido logo em seguida.

- Acho que não tem mais jeito – disse para Cláudio após explicar-lhe aqueles fatos.

- Porque diz isto?

Expliquei para Cláudio a promessa que fizera a Mariane de lhe conseguir outra bíblia. Por isso fôramos testemunhas do que ocorreu naquela manhã. No meio da nossa conversa entra pelo quarto minha esposa.

- Querido, não precisa mais se preocupar; já tenho a bíblia.

Minha palidez foi imediata ao ver Mariana sentando-se em uma cadeira a nossa frente, já pronta para abrir a bolsa que apoiara sobre as pernas cruzadas.

- Você conseguiu recuperá-la? Mas, como, se acabaram de devolvê-la?

- Não falo da que Jamile acabou vendendo, mas desta.

Mostrou-nos um belo livro de capa dourada que chamava a atenção pela beleza e esmero com que foi confeccionado.

Aliviado e feliz, só restou-me um sorriso e palavras de elogios por sua conquista brilhante. Ainda bem que terminou tudo assim. Jamais me permitiria ver minha esposa contrariada pela desconfiança de algo que, verdade fosse, seria fato inédito em nosso casamento muito feliz até os dias de hoje.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 12/06/2015
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