O Que foi uma cidade
Saber que a cidade em que vivo atualmente foi o meu paraíso. Respirar hoje esse ar viciado que tem levado a leitos de hospitais, quando não prematuramente à cova de um cemitério principalmente crianças de pulmões frágeis que não resistiram à poluição assassina, não deixa de ser torturante. O tormento de conviver com o estresse e a correria que roubam a felicidade dos que aqui vivem já faz parte da minha rotina, mas minha mente vive no passado; somente isto me traz paz e segurança. Não quero dizer com esta frase que não sou feliz. Esta ainda não me foi roubada, pois, para mim, independe a felicidade de condições externas expostas pela sociedade materialista. Quero dizer que as linhas de metrô que passam aqui em frente, os ônibus de dois andares abarrotados de caçadores de sonhos e as buzinas infernais dos táxis competindo com o ronco das motocicletas não interferem muito na minha paz porque não permito que isto aconteça. Sendo assim, não gasto aqui mais do que um ou dois dias de uma semana e já acho mais do que o suficiente.
Enquanto traço estas linhas olho para o outro lado da rua fazendo atravessar a visão minha janela entreaberta. Exatamente ali onde está um hipermercado, passei a minha infância. Comércio não existia com exceção de uma barraca de lona sustentada por bambus fincados na terra. A montanha que há por trás, agora escondida por arranha-céus e alguns barracos perigosamente construídos era a nossa visão privilegiada. A moradora que nesse momento abre a janela e sacode o tapete de sua moderna sala não faz ideia do que havia ali no passado destruído pelo que eles chamam de civilização. Vejo a poeira do seu gesto, em forma de nuvem, dissipar-se na natureza; bela contribuição neste ato imprudente. Ali corriam cachoeiras entre centenas de bananais. Os micos leões dourados, hoje extintos praticamente, saltavam felizes entre os galhos e, seus chiados, de tão próximos, nos alcançavam ao descer pela encosta como as cascas das bananas que consumiam caíam por vezes sobre a lona do seu Agenor.
A diversão favorita, minha e de outras crianças era subir a encosta e passar uma tarde inteira usufruindo o que a vida tem de melhor. A cada parada havia um lago natural de águas esverdeadas que recebiam o constante batismo das quedas d’água. Ao nos aproximarmos já podíamos sentir o frescor do local, vendo nossos corpos umedecidos pelas gotículas que esbatiam nas pedras e vinham em nossa direção. Subíamos mais, entre os troncos esverdeados de liquens da floresta, os galhos quase se arrastando no solo macio de folhas amarelecidas. Quebrávamos alguns que vinham com flores que arrancávamos e enfeitávamos com elas os bolsos de nossas camisas. Mas logo o calor do sol fazia com que murchassem e tínhamos que nos desfazer delas. Escolhíamos sempre a parte mais alta da montanha para o nosso banho de cachoeira, principalmente nos verões muito fortes em que o ar fresco ali era uma benção maravilhosa. Não consigo esquecer o rumor das águas descendo pelas encostas; era algo mágico, impossível de descrever em simples palavras. Uma visão deslumbrante era formada pelas borboletas em torno da queda d’água. A luz do sol refletindo-se ali destacava ainda mais o conjunto de cores que se formava.
Passávamos beirando o cercado de bananeiras e não hesitávamos em estender as mãos para alguns cachos já quase amadurecidos e puxar para nós alguns frutos. O Sr. Mário, do seu barraco improvisado, sorria de longe ao ver-nos em tal ação; era para ele um prazer dar, as suas bananas, um destino comum. Ele trazia o facão para arrancar o cacho, mas quase nunca o aceitávamos. Não queríamos atrapalhar nosso passeio com um peso incômodo. Depois de banharmo-nos, cevarmo-nos de natureza, verdadeiro conforto e felicidade descíamos, com o sol quase se pondo; as caras vermelhas do bronzeado. Andávamos por sobre pedras limosas com o cuidado extremo para não escorregarmos e cairmos sentados na água. Descalços, com os chinelos nas mãos, metíamos os pés na terra fofa e encharcada até alcançarmos a rua. Ainda havia movimento. O apito distante indicava a chegada de mais um trem. No outro lado da rua a estaçãozinha ganhava aglomeração. Donos de terra dentro de calças jeans recém-chegadas às importadoras do centro, suas madames com seus chapéus floridos e seus vestidos elegantes aguardavam nos bancos do pequeno saguão ou em pé sorvendo, nos bares, o cafezinho quente e esfumaçado.
Nossa tarde só terminaria de fato satisfatória se conseguíssemos entrar na estação e, curiosos, rever amigos ou até parentes de quem tínhamos saudades ou caras novas, casais, jovens ou mesmo idosos repletos de sonhos e carentes de uma vida nova. Nossos trajes, entretanto, nossas caras sujas e pés encharcados não eram um belo cartão de visita. Sabendo que seríamos impedidos contornávamos a grade e íamos para o jardim. Dali, com a visão empanada por malas que se empilhavam na plataforma, avistávamos os passantes da estação.
- Aquele não é o prefeito? – perguntei um dia ao meu amiguinho.
- Sim; pelo menos é o que dizem no rádio.
- E o que pode querer em nossa vila? Não há nada que o interesse aqui.
- Não tenha tanta certeza; senão não viria.
Não resisti ao impulso de conhecer as ideias do prefeito ao se intrometer no meu tão pacato e feliz lugarejo. Embora criança, sabia dos seus projetos de modernização, o que fizera nas cidades onde atuou e as transformações, que chamo de deformações, que impôs àqueles lugares. Jamais fui contrário ao progresso, mas penso que em tudo há um limite e aquele homem não conhecia a diferença entre uma coisa e outra. Corri para casa a fim de me refazer da aparência desleixada e deixei mamãe um tanto preocupada com a minha correria e atitude. Ainda peguei-o fora do automóvel, preparando-se para embarcar.
- Deixe-o, Caruso – disse assim para o segurança que quis evitar minha aproximação.
- O que esse garoto elegante e bem vestido deseja? – falou ao ver-me na minha melhor calça e camisa azul de mangas compridas.
- Posso saber o que o senhor deseja em nossa aldeia?
- Mas que pergunta indiscreta! Como sou, porém um homem público, vejo-me forçado a responder e matar sua curiosidade. Venho para a reunião que vai definir a construção de um shopping Center para a sua comunidade.
- Não queremos shopping Center. Isto vai arrasar o nosso meio ambiente não há espaço para isso aqui.
- Isto é o que veremos; para isto estou presente. Mas uma coisa eu posso garantir. Faremos tudo do melhor jeito possível. E não se esqueça, é tudo em nome de uma bela e feliz modernidade.
E foi assim que vi minha pacata e feliz aldeia transformar-se nesta selva de concreto e de poluição que tenho presenciado. Não estaria triste e desacreditado se visse, nas ações humanas para melhoria de vida, o bom senso de preservar o que temos de mais precioso para as gerações que virão. Mas é a vida; temos que conviver com isto como aprendi a fazê-lo. O limite e a prudência são para todos os homens, mas só alguns fazem uso dessas duas qualidades essências à preservação da vida humana.