786-DONA FILÓ E A NOTA DE CINQUENTA -
Na pequena cidade, Dona Filó, a “mulher que conversava com Deus”, era uma figura querida, apesar de suas manias. [1]
Ultimamente ela estava tendo manifestações inexplicáveis: estavam reaparecendo em sua casa diversos pequenos objetos desaparecidos há tempos, como uma bolsa de couro, um livro de orações, uma pequena estátua de Buda, e um par de chinelos de inverno que usava nos dias de muito frio, entre outras.
Se estou encontrando coisas que perdi e das quais já havia me esquecido, vamos ver até onde está minha maré de sorte, pensou.
Quis por à prova o “fator X” dessas aparições e dirigiu seu pensamento para a entidade que estava lhe proporcionando aqueles achados.
“Tenho que ir ao centro comprar uns novelos de lã para meu tricô. Desejo encontrar uma nota de cincoenta na próxima esquina. Darei esta nota ao primeiro mendigo que encontrar.”
O percurso não era longo. Apenas alguns quarteirões de ruas secundárias separavam sua modesta casa à Praça da Igreja Matriz, o centro comercial onde estavam as lojas e os bancos.
Qual não foi sua surpresa (até assustou-se) quando viu na sarjeta uma célula velha, dobrada e meio encoberta por folhas secas. Olhou para um lado, olhou para o outro, a fim de ver se alguém estaria olhando para ela. A rua estava deserta. Numa rapidez extraordinária para sua idade, apanhou a nota, deu uma olhada rápida e viu os algarismos que indicavam o seu valor: 50. Sem se deter em detalhes, meteu rápida a nota na bolsinha.
Na escadaria da Igreja Matriz estava, como de costume, o Charnata, pobre miserável, aleijado e mal educado, que vivia de esmolar. Ao passar por ele, Dona Filó tirou da bolsinha a nota achada há poucos momentos e a colocou no chapéu que estava no chão, ao lado do esmoler.
Seguiu em frente, entrou na Loja de Aviamentos e estava escolhendo as cores de lã que precisava, quando entrou o Charnata, puxando por um pé, chapéu na mão.
Estendeu a nota para Dona Filó e disse em alta voz:
— Óia, dona, vim devorvê a esmola.
— Uai, seu Charnata, devolver por quê?
— A senhora tá com os miolo mole? Essa nota aí qui a sinhora me deu num vale mais nada, não. Óia só, é de cinquenta cruzado, nois já tamo no tempo do real. Acórda, sô!
Dona Filó pegou a nota de volta, abriu a bolsinha, colocou nela a nota de cinquenta cruzados e tirou uma de um real e entregou ao Charnata, dizendo:
— Eu num tinha percebido.
E o Charnata, sem se dar por achado, respondeu:
— É, quando a esmola é de mais, o pobre tem di disconfiá.
Envergonhada, Dona Filo comprou apenas um novelo (aquele que estava em sua frente, que nem era a cor apropriada que queria). Saiu rapidamente da Loja de Aviamentos e na volta à sua casa, ia pensando:
Também, quem manda não pedir certo. Pedi uma nota de cinquenta, recebi a nota de cinquenta. Da próxima vez, vou prestar mais atenção no que pedir a Deus.
Desamassou a nota com cuidado. Estava limpa, apesar deter sido encontrada na sarjeta. Foi até o quarto, abriu a Bíblia aleatoriamente para guardar a nota sem valor e num gesto de pura mania olhou para o texto.
No fim de um parágrafo dos Evangelhos, leu:
Pedi e recebereis.
[1] Ver conto # 264- “Dona Filó Conversa com Deus”.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 18 de junho de 2013
Conto # 786 da Série 1.OOO HISTÓRIAS