Helmut
HELMUT
O pequeno aeroplano de guerra sobrevoa a região de Meuse, Ardennes. Lá embaixo se vê horrendas cicatrizes frenquistenianas cavadas na terra. São trincheiras.
Helge tem poucos minutos para saborear uma mistura rala com alguns pedaços de carne de cavalo. A sua volta tudo é cinza. A lama recobre tudo e a todos. Seus pés chafurdam nela, de onde algumas bolhas explodem. O ar aspirado cheira a urina, fezes, carne queimada e carne putrefata. Alguns mortos ainda não foram removidos. Outros, já mortos a alguns dias, de uma forma ou de outra, estouraram devido à ação dos enormes ratos, tão grandes como coelhos bem alimentados.
Helge e os outros companheiros da trincheira já se acostumaram com eles, a ponto de espantá-los com um simples safanão, como se faz com uma mosca irritante.
Helge ficara de vigília aquela noite e portanto permanecera na trincheira com alguns poucos aguardando a shoktroopen, que partira há poucos minutos em meio à gritaria e apitos dos tenentes e sargentos. Seu irmão Helmut, ano e meio mais velho, fora junto. Helmut, quase 1,90 m de altura, era ruivo com olhos verdes, diferente de seu irmão aloirado de olhos azuis e quase 20 centímetros mais baixo. Fora Helmut que trouxera o irmão para trabalhar com ele nas cocheiras das ricas mansões a beira do Alster. O porte dele impressionara a filha do capataz da cavalariça de uma das mansões e pouco antes dele partir para o front, casaram-se.
Antes de terminar sua sopa, Helge ouve os disparos e explosões, antes distantes, agora se aproximando, junto com o alarido de berros, gritaria, xingamento, fazendo tudo ao seu redor estremecer como o enunciar de um terremoto. Poeira junto com a fumaça das explosões tornou toda área escura como um repentino eclipse. Lá vinha o caos. A anunciação dos quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Os primeiros shoktroopenman desabam dentro da trincheira a fim de abrigo das balas dos aliados. Helge, conforme instruído, se posiciona e mirando seu fuzil Mauser, inicia os disparos de contra-ataque.
No meio daquele hectacombe, veteranos de ambos os lados, matam recíprocos inimigos sem emitir um som ou mexer um músculo da face. A bestialidade já não os emociona. Os novatos são os que berram de horror, medo, desespero. Baionetas são como pincéis que pintam os corpos de rubro, mas não decepam. Morteiros e tiros mutilam, deixando membros humanos e entranhas como desenhos inacabados num quadro surrealista. Helge vê dois ratos esguichando um para outro, pela posse de uma mão humana a um metro à sua frente.
Através da mira, a retina azul do olho de Helge mira nos soldados de capacete de aparência de um prato, pois os uniformes caqui dos aliados também estão cobertos de lama, deixando-os, independente da nacionalidade, cinza.
De repente poucos retardatários ainda conseguem se jogar dentro da trincheira, agora o paraíso da salvação. Outros são abatidos. Por último, um herói vem arrastando outro soldado que segura uma massa de sangue e bandagem na frente do rosto. A dupla consegue avançar poucos metros quando o herói cai baleado. Ambos tombam, o ferido largou a bandagem e tenta desordenadamente se levantar. Helge reconhece seu irmão Helmut sem parte da bochecha esquerda e lábios, deixando à mostra os dentes que restaram, como um sorriso esganiçado. Seu nariz já não existe e no lugar de seus olhos há somente um profundo rasgo amarronzado.
Helmut consegue se pôr em pé e capengando, com ambos os braços esticados pra frente, cegamente se deixa guiar pelos berros desesperados de seus compatriotas. Mas no meio daquele fogo cruzado, os camaradas de Helmut vêem sua cabeça dar um tranco repentino e um chafariz rubro e viscoso aparece por trás dela. Helge o abatera.