Mezinhas do Hélio

Nos tempos em que móveis falavam, pena é que gravadores não registravam. Mas não faz mal não. Mais grave é a recordação.

A fábrica consumia horas e horas na vida daquele povo, mas era a vida deles e de suas famílias. Um chamado da chaminé, muito mais agudo e menos tolerante do que o chamado da Eucaristia, era para ser cumprido. A tempo e a hora. E não se brincava com o gerente impertinente - feito o de Noel Rosa.

Mas os ordenados eram limitados e havia em muito operário o desejo de fazer mais. Afinal, descontado o dia do Senhor, domingo do sacro descanso, sobravam quase sempre dezesseis horas diárias naquelas vidas operárias - uma vez cumprido turno da labuta entre teares e filatórios, e desde que não se computassem horas extras.

Foi quando deu na cabeça de papai, já inclinado para a alfaiataria, e onde chegara a meio-oficial, a pensar numa forma de remediar a situação salarial: como era talentoso aplicador de injeções - em qualquer músculo e em muita véia - além de ler bula, e entender mais que bulufas, convenceu, ou foi convencido, pelo farmacêutico Hélio

Fiúza, da sede municipal, a abrir uma seção de sua farmácia no povoado. A funcionar na própria casa no nosso industrial distrito do Brumado de São Gonçalo.

E, quase da noite pro dia, nossa sala se transformaria: a mesa preta foi para a cozinha, justamente para dar lugar à nova, envernizadinha,

amarelinha mesinha do Hélio. Dividia a sala ao meio, preservando estantes de remédios dos entrantes e de seus assédios.

Além dos rolos de papel para embrulho e os barbantes que nela se repousavam, vi muito braço estendido ali para levar - de cara fechada, cara virada ou cara de nem aí - a sua boa agulhada. Injeção era a moda da época. As duas seringas, a grandona e a pequetita mal paravam em seus estojos.

Até não muito tempo, pois logo papai se cansou da azáfama das mezinhas do Fiúza e da clientela que, a qualquer hora do dia ou da noite as usa e, não raro, abusa.

E da breve experiência farmacêutica restou-nos pouca coisa além

duns vidros de sal-de-grabo (seria Gláuber?) meio rolo de barbante, as seringas que continuaram a acompanhar papai nas suas continuadas demandas de aplicação de injeção e a mesinha, que continuou a ser sempre por nós chamada de "do Hélio". Mas que perdendo o lugar de proeminência na sala, se emburra - e se cala.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 22/04/2015
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