Fantasmas

Quando todos foram embora a casa cresceu desmesuradamente. Foi por isso que Luís fechou os quartos e o escritório. O casarão passou a ser para ele o quarto menor, a casa de banho, a cozinha e a varanda. Havia uma empregada que, sem gente que a justificasse, passou a vir dia sim, dia não. Lavava a roupa e deixava comida feita. Fazia compras, tratava, devagar e mal, do jardim. Tudo para que ele pudesse ficar, sem fazer nada, com os seus pensamentos quando ela estava e com muitos desvarios quando ela ia embora. Quando queria saber de alguma coisa mais íntima, abria o quarto que foi seu e de Isabel, sentava-se na cama a olhar para o espelho e falava como se sua mulher ainda ali estivesse. Escutava, na velha grafonola de manivela, a “Sinfonia dos Salmos”, de Stravinsky, como som propiciatório da conversa. Muitas vezes gritavam os dois, ele e a grafonola, ele e Isabel cujas palavras em tom de guerra só ele ouvia, cujos afagos só ele sentia. Mantinha-se em forma fazendo ginástica no quintal, andando quilómetros nas cercanias da quinta. Para todos os efeitos as pessoas que foram a sua família, estavam sempre lá nas horas em que, em vida, ocupavam o velho solar. Nunca mais quis cortar a barba nem o cabelo. Convenceu-se que isso valia o luto da roupa que sempre quis clara. Era um tufo de pelos cavalgando um corpo magro que começava a envelhecer. Sempre que se percebia mais solitário, entrava na velha biblioteca e, esparramado no cadeirão de couro, conversava com quem tinha convidado. Soube pelo próprio Rotko da origem das fatias de cor que o notabilizaram. Eram só variantes das paisagens físicas que ele amava e, mais tarde, das paisagens interiores que ele via olhando para dentro de si mesmo. Pollock explicou-lhe as “Veredas Onduladas” e o que estava realmente na razão dos escorridos da tinta ou no largar das cores na tela deitada no chão. No dia anterior estivera com António Sérgio e Aquilino Ribeiro. Que dois, murmurou sorrindo. Achou muito divertida a narrativa do filme “ O Leão da Estrela” feita pelo próprio Artur Duarte e até o Sebastião da Gama teve como interlocutor! Muito económico de palavras para o seu gosto. Não gostava do título do livro “ Cabo da Boa Esperança” mas acabou por lhe dar razão mais pelo que inferiu do que pelo que o poeta contou. Que fosse ser assim reservado para a Arrábida! No dia seguinte levantou-se febril e deambulou pelas escadas, pela eira e sentou-se encostado a uma oliveira a pensar no que teria a dizer logo que pudesse estar com Miguel, o seu filho mais velho. Depois sentiu-se fraco mas preferiu ficar um pouco mais. Adormeceu. Quando Angelina chegou com as compras já o achou frio. Para o funeral viria a única herdeira, uma tal Ambrósia de Freitas que ninguém na terra conhecia.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 08/04/2015
Código do texto: T5199823
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