TRANSFIGURAÇÃO
Já não me dava questionar o comportamento modorrento daqueles sertanejos. Talvez a convivência diária -no diário de toda vida- com aquele sol tórrido tenha lhes furtado o bom senso ou cozido, em banho-maria, o cérebro tão pouco utilizado nas circunstâncias em que se apraziam com o passar dos dias.
O imenso angico dava boa sombra no pátio daquele povoado que fora uma antiga fazenda, cingida por casebres dos meeiros que trabalhavam na região. Eram casebres pobres, de adobe, e alguns botecos rústicos, aonde mosquitos e varejeiras voejavam, zunzunando entre copos, caixas, garrafas, rolos de fumo e beiços bêbados.
No centro do povoado havia uma praça aos pés do cruzeiro. Uma bandeirola de Nossa Senhora do Rosário mantinha-se tremulante e altiva na ponta de uma vara bastante comprida, pintada de purpurina e enfeitada com laranjas fincadas nos tocos de galhos deixados para esse fim.
Um ou outro devoto ainda se conservava dentro do uniforme do terno de congada em que dançava todo ano. Sustentava nas mãos meio bobas um pandeiro ou um cambito que, de uma hora para outra, poderia transformar-se em arma nas brigas que invariavelmente aconteciam: o objeto que auxiliava no invocar de adoração convertia-se em emissário do ódio e da agressão.
No início, fora-me difícil conviver com pessoas em tamanho estado bruto. Vindo de um mundo em que a convivência e a paz quase insossas beiravam o limite máximo do exaspero, via-me em alerta constante nesta terra em que cada gesto leva a uma reação inesperada e visceral. Aqueles momentos de madorra do vão do dia eram instáveis e enganosos. A qualquer instante, algo mínimo poderia acender o lastro e pernas, braços, objetos, xingatórios e movimentos quebrariam o ócio e todos, qual formiga “correição”, romperiam o trieiro, espalhando-se numa desordem, em verdade, formidável.
Naquele lugar, apenas um ou outro laivo demonstrava princípios de contemporaneidade. De resto, o que se via era um retorno ao período medievo, estacionado no tempo, em que homens rudes compensavam com expressões e atitudes animosas a ausência do dom da palavra que haveria de libertá-los. Muitas vezes eu perguntara o que estava fazendo neste ermo do cerrado goiano. Perguntara... agora, não mais! Um crescente de resignação, irritante em princípio, dera lugar, pouco a pouco, a um carinho sem sustos pelo que me vocacionara a viver. Hoje, eu seria capaz de preencher o diário de minha vida com tremendas novidades submersas na rotina das horas. O que tenho vivido aqui deixou de ser privação... ou provação... ou degredo. É a intensa lapidação do meu ser que se resgata do ordinário e ostensivo, através do mínimo das coisas. No entanto, foi preciso abandonar o luxo que alisava, polia e azulejava a superficialidade das minhas conveniências para descobrir-me como parte essencial e transformadora das circunstâncias. De esponja que tudo absorvia, eis que me apercebo prisma que esparge e irradia.
Aos poucos fui acostumando-me com o silêncio, companheiro meu, interrompendo frases e quebrando o curso daqueles olhares. Pude decifrar a enganosa impressão de subserviência que acomete a todos dali, fazendo com que cada um, e um por um, se mobilize em falsa descontração, afastando-se ao meu passar, como se lembrasse de algo importantíssimo a ser feito em algum outro lugar... Desde que nunca fosse próximo a mim.
Como naquele tempo em que homens admoestados pelo cristo deixaram madalena extremamente assustada e sozinha no paço, eu me via só... Imediatamente. E a única coisa que não consigo administrar é este isolamento que me acompanha. Ao me darem tanto espaço, estão aprisionando-me dentro do que me é mais íntimo e menos desejável ou necessário: A abjuração dos meus propósitos!
Não lhes condeno a falta de afinidade para comigo. Afinal, sou discrepante naquele cenário. E o que é estranho ou diferente causa espanto, medo e repulsa. O que é estranho ou incompreensível já traz o estigma que acompanha tanto os párias quanto os ídolos: a solidão, a segregação! Como não almejo ser ídolo (e bem distante de mim está o desejo de querer me constituir em pária), muito tive de fazer para encaixar-me dentro de um parâmetro menos desconfortável na nova comunidade que resolvera adotar como sendo meu campo de atuação.
Agora há pouco, o velho angico estivera no cumprimento impassível da sua missão de fornecer sombra e ponto de referência para o local e para os homens, acolhendo-os sob sua fronde.
O limite da sombra: raia separando duas grandezas sórdidas!
Minha aproximação fez com que restássemos eu e a árvore - ambos por não poderem fugir de si e nem se desvincularem de seus desígnios -, espreitando-se e respeitando-se, como dois antagonistas que se comparam e se analisam na busca do detalhe mínimo que há de definir a vitória. O cansaço, por breve momento, fez-me perceber no angico um resquício de hospitalidade e sua sombra me apareceu perigosamente refrescante e acolhedora. Para ele, certamente, eu aparentei ser alguém que clamava por batismo. O convite mudo vibrou em mim como perversão, quebra de convicções. Ao aproximar-me, diminuindo aquela distância instituída como lei entre nós, entre o meu mundo e o mundo xenófobo daqueles sertanejos, um sinal de alerta foi acionado. Se eu cria em algo de sagrado em mim, aquela sombra só poderia ser o profanador, absolutamente díspar dos meus propósitos. Mas, se mesmo o deus deles quis suportar o mundano, por que não eu? Eu precisava trazê-los para junto de mim.
...
“...Haveria de se romper o véu? Haveria de se violar a mortalha insofismável e maniqueísta que separa o eterno e o efêmero? Seria eu capaz de interromper o ciclo de uma pseudossalvação acalentada e cultivada dentro das proposições firmadas por mim, exclusivamente por mim?
Atento-me que há muito eu perdera os costumes tradicionais da oração e do rito, talvez porque conversar com um deus seja dom que se desgaste ou se atrofie ou se segrede. Se eu o tive um dia, devo tê-lo perdido nas várias esquinas cruzadas ou dobradas emudecidas. Lembro-me que quando criança ainda recitava o ‘bença-pai-bença-mãe!’ e dormia ao embalo de um ‘painossoqueestaisnocé’ mastigado entre fiapos de sono que se teciam mudos, até que a tosse granditoante de meu pai no ‘quarto-da-sala’ se perdesse como último fato concreto a se rebelar contra a magia mórfica, submergindo-me no mesmo visgo em que se perderam o ressonar de meus irmãos e o cricricri do grilo, insone notívago (quiçá a voz da consciência!), no cantinho do quarto anoitecido.
Quem sabe esta abstinência de orações tenha sido uma espécie de furor contra o mundo, na torpe intenção de agredir aquele que se autointitula instituição máxima e quase unânime de bondade e amor. Passei a acreditar apenas na qualidade racional dos desvalidos de crenças e anseios. Por mais que tentem me convencer de que só morremos quando se abate a fé em nossos sonhos e de que devemos reconhecer nossa inferioridade diante de algo ou alguém, mais e mais me certifico de que sonhar é para iludidos. Na verdade, creio que morremos quando o instinto definha e as células desgastadas deixam de produzir a seiva e os movimentos básicos para corpo e mente. Não quero me apresentar como pessoa explicitamente cética, já que acredito na lógica da razão e da idéia pura como energia, desacreditando do prazer e da dor como propulsores da reação que evolui e modifica o mundo...”
...
A sombra à minha frente mostra-se ainda convidativa e comovente. E, mesmo que o meu próximo passo aparente um gesto simples, toda a vila criara a expectativa de uma possível e inevitável simbiose ou duplo suicídio iminente naquele embate silencioso. Todo mundo se convencera da grande e silenciosa guerra travada ali: o angico e eu, seculares e sectários!
Como a experimentar suspeita pré-consciência do nada, estendi cuidadosamente o passo em direção à sombra, até que um frescor gelatinoso e inédito acariciou a ponta de meus dedos. Confiante, avancei mais alguns centímetros e uma onda de choque alastrou-se por minha perna. Senti o ouvido estalar imediatamente. Direcionei minhas mãos assustadas, acolhendo a sombra nos meus dedos sedentos em concha. O refrigério cravou-se fundo entre meus artelhos. A terça parte do dia aproximava-se quando todo meu ser fagulhou na semiescuridão da sombra.
O coração acelerou!
Um brilho intensamente branco perpassou meus olhos e desmaiou tranquilo por entre os neurônios fervilhantes no meu cérebro. Era a hora nona! Abri meus braços em cruz, bebi do cálice amargo e cerrei meus olhos, sentindo-me lavar com meu próprio sangue que vasculhava cada vaso, impondo-lhes a ação renovadora e remissiva de devolver ao espírito a profissão de fé e ao corpo a dádiva nunca alcançada das sensações de prazer e dor constantemente negadas por mim.
Tudo girou vertiginosamente à minha volta!
Avistei o mundo suspenso e desacreditei daquilo que erigi, por mim e em mim, como único e verdadeiro. Deixei-me vibrar de uma forma meio louca quando se estilhaçou em meu interior todo travo de surdez nefanda e minha vida se deixou visitar pela luz do novo achado...
Ao terceiro dia meu casulo fragilizado finalmente rompeu-se e completou-se o processo de metamorfose. Abri meus olhos receosos e pude ver um cenário diferente, mesmo sempre igual. Libertei-me tropegamente das várias mãos que me amparavam -ou me interpretavam- para, enfim, voejar e vasculhar e buscar e compreender-me no novo horizonte descortinado para mim...
... O vento carregou minha primeira lágrima de purificação!...