Bem que Faustino saltitava, alternando as pernas!
Bem se apoiava na pontinha das garras!
Qual quê!
O sol ardia no céu, como se Deus nessa tarde tivesse acordado com vontade de sol frito em frigideira azul-cobalto.
O pobre, de pupilas encolhidas num finíssimo losango, desatinava.
O sangue lá dentro fervia.
A cabeça em triângulo rodava... Rodava por dentro, de febre e fadiga e rodava por fora em busca de sombra.
Cada grão de areia era uma agulha em brasa que lhe atravessava a escama e feria a ténue membrana da pata.
Desatou numa correria, sem saber para onde ia... mas ao menos tentava remediar qualquer coisa de tantas que o incomodavam.
Seguiu numa carreira, ziguezagueando como louco, pensando:
- Se me virem julgam que é da cerveja... Ah, uma cerveja gelada, borbulhante e loira a escorrer pela goela!
Não pensem que um réptil tem miolos de galinha... ora essa!
Faustino era um poço de inteligência!
-...Ah, um poço!
Um poço de água rasa, fresquinha, muitos limos à tona; girinos na chocadeira...
Faustino muito corria, mas onde estava o que sonhava?!
Longe, rubro em meio ao amarelo fulgente do solo, vislumbrou um livro caído ao desleixo, a lombada soerguida, as páginas desalinhadas, como se as palavras coscuvilhassem entre elas.
- Ena! ... Uma sombra!
Faustino deslizou, de cabeça perdida, sem pensar que podia aninhar-se, ali escondida, uma armadilha... Pensava era na frescura, no alívio que teria, no descanso das patas musculosas de tanto balanço que nem bailarino em palco!
Ele, uma lagartixa a bailar num palco!
... Riu-se muito o Faustino, que era pequeno e esguio, curioso e ladino... em todo o buraco metia o focinho!
Por isso já fora ao teatro, à ópera, à escola...
Pensam que um lagarto não pensa?! – Engano vosso!
Entretanto atingiu o refúgio... estendeu-se ao comprido... suspirou de alívio!
Ofegando, deixou que a temperatura se equilibrasse um pouco, depois virou-se e leu alto:
"O senhor presidente decretou que a açude será inaugurado pelas sete da tarde".
Virando a cabeça para a sua sombra no chão, Faustino consultou o relógio de sol:
– ora essa! Seis e meia!
Ao longe, o ruído da banda feriu-lhe a sensibilidade das membranas auditivas.
As rodas dos carros todo o terreno abalaram o chão e Adolfo estremeceu:
– Ai que o livro descai! Gritou aflito.
Cada vez mais perto, o tumulto.
Já distinguia, sobre as caixas abertas dos camiões, uns rolos imensos com mangueiras enroladas.
Os carros dos bombeiros, as limusinas com tejadilhos abertos, humanos gordos, vermelhuscos, embonecados em trajes de brancos linhos.
Adolfo pensou que era hora de erguer as patas dianteiras ao céu:
– Adeus mundo, que tão breve foste e depois de me assares me comes e bebes!
... Mas pareceu-lhe fora do tempo verbal a oração.
– Espera lá! Eu posso estar tisnado mas assado... nem por isso!
– E quanto a ser engolido... Deus me livre, que arrepio!
Lembrou-se logo da falecida que vira desaparecer esperneando nas mandíbulas de uma cobra safada... Que horror!
Deu um salto, e correu, correu, correu...
– Para onde irei? Aonde haverá um penhasco, uma árvore, aumm... pum!
– Um poste! Ainda discerniu, antes de cair de pantanas.
– Ai! Ui! ... Ai a minha cabecinha, como dói!
Mas o barulho alto lembrou-o da inundação que em breve se desataria daquela embrulhada toda...
– Pernas, para que vos quero?!
Tomou balanço, abraçou o mais que pôde o largo tronco e subiu, subiu, subiu subiu....
Viu as horas, pelo relógio da sombra... Da sombra do poste no chão, ora essa... Não estão pensando que o Faustino ia despencar do poste só para saber o tempo, pois não?!
Soou algo como chuuuuuuaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Os tambores rufaram:
– Zabum! Zabum! Zabum!
Os grotescos humanos, alinhados e de branco, subiram ao palco armado na caixa de outro camião... e o falatório enjoativo, monótono, as vénias à direita e à esquerda...
Que nem na torreira suas excelências esqueciam as "boas maneiras"... Faustino fez uma careta.
A água, entretanto, jorrava...
Lá de cima, Faustino alcançou então a descoberta:
O seu grande deserto, onde se esfalfava e quase se escalfava não passava de uma regueira aberta entre dois campos de trigo.

... E então, só então, agradeceu lá do alto, ao Altíssimo, as pernas e a esperteza!