MORFINA - A Bela Adormecida
Pálida e imóvel ela se assemelhava a uma miragem, uma ilusão de ótica tal qual um quadro da mais bela arte ultrarrealista que tenta imitar a crueza da vida. Ela ali deitada era como um anjo caído que perdera na sua queda as asas e estivesse repousando suavemente entre os lençóis, belo como o paraíso perdido, inocente como um recém-nascido. Um cadáver poupado dos dedos pútridos da morte, uma múmia preservada perfeitamente como uma estátua esculpida pelas mãos de um deus.
Ela dormia um sono tão profundo quanto a morte, mas estava viva, presa dentro de seu próprio corpo. Sua consciência se inebriava de fantasia, de sonhos febris, mas o eco do mundo reverbera mesmo nos longínquos reinos de loucura daquela pobre alma.
A agulha que lhe rendera tamanha maldição não fora a roca de um tear e sim a de uma seringa. Ao injetar veneno em suas veias ela se condenara e nenhum príncipe poderia lhe tirar daquele coma, o que não impedia dos príncipes aos plebeus de desejar beijá-la. Afinal ela parecia ali tão calma e serena que na mente dos homens ela se oferecia como uma ovelha, um cordeiro para o sacrifício. Ela praticamente em suas imaginações perversas pedia, consentia em ser amada, usada, abusada para aliviar a existência dos machos fracassados que jamais poderiam sonhar em copular com uma donzela tão linda. Nem mesmo pagando, subornando, eles teriam acesso a um sonho como ela, ela que era produto refinado do delírio mais acalorado do imaginário masculino.
Mesmo seu pai fora encantado por seus feitiços e deixara com o passar do tempo de vê-la como sua filha e começara a salivar como um predador encarando sua presa. Ele jamais a atacara, porém ela sabia do desejo que inflamava seu pai e sentia-se enojada. Os homens pareciam todos para ela seres repugnantes, desprezíveis, dignos de pena e medo e ela tinha motivo para pensar assim pois era exatamente como loucos varridos tomados pela libido que eles se mostravam a ela. Todos desejavam seu corpo, sua carne, como a hiena e o urubu ao encontrar uma carcaça, como o lobo ao espreitar o rebanho, sem lembrar que ela também sentia, pensava, amava.
Decidiu fugir enquanto podia e nas ruas sentiu uma liberdade que jamais vivenciara entre as paredes sob o jugo de seu pai. E na selva de pedra aprendeu a sobreviver e a ceder às tentações. Se a luxúria se apresentava como prática asquerosa, o desejo precisava ser anulado, anestesiado de outras formas e logo as drogas revelaram o prazer e a dor de seus poderes. Ela sucumbiu tão rapidamente que para conseguir um pouco do mal que lhe destruía ela começou a se vender, já que mesmo maculada pela sujeira ela brilhava como um diamante na lama, igual a uma pérola atirada aos porcos.
Seu fim foi repousar no leito e definhar enquanto Morfeu tecia histórias que fizessem ela esquecer o pesadelo que vivera, sonhos que justificassem sua existência. Sonhos tão absurdos quanto uma princesa adormecida esperando por uma amor impossível, sonhos tão antigos como contos de fadas. Sem o efeito da heroína, sem o gosto da saliva e do sêmen da prostituição, só éter onírico.
Etérea se tornou sem alarde e antes de ser enterrada o legista a beijou sem culpa, com lágrimas nos olhos, estava agradecido por ter a chance de se deparar com um corpo tão lindo e de ser o último a se despedir de uma vida tão amargamente desperdiçada.
Ela sorriu, finalmente seu príncipe havia a encontrado, mas seus lábios não se mexeram, nunca mais.