O Médico.
Milton Pires
Quatro e meia da tarde. Cinco de julho de 1998. O médico voltava para casa caminhando pela rua central daquela cidade que ficava no extremo, quase na fronteira com o Uruguai, do Rio Grande do Sul. A rigor não se podia mais falar em “tarde”. Em pleno inverno, com uma chuva fina tomando conta de tudo, era noite praticamente fechada que as pessoas enfrentavam. Triste por estar longe da família e num lugar onde não conhecia quase ninguém, ele caminhava absorto em seus pensamentos. A sensação de irrealidade, de estranhamento total, era aumentada pela presença de marinheiros, de prostitutas e fuzileiros navais...pelos fragmentos de conversas em outros idiomas, e por uma loja de departamentos com um aparelho de som tocando “Hotel Califórnia”.
Atravessando o centro e tendo chegado à frente do edifício em que morava, viu que se encontrava estacionada ali uma camionete da Polícia Civil. Leu, com alguma dificuldade naquela rua mal iluminada, a palavra “PERÍCIA” escrita na parte de trás do veículo. “Alguém morreu” - pensou antes mesmo que dois homens carregando uma maca de plástico com o corpo de uma senhora – talvez dos seus setenta anos de idade – passasse por ele.
O médico ainda não conhecia ninguém naquele prédio com exceção de uma faxineira que, todas as manhãs, fazia limpeza na pequena entrada. Não sabia quem era o síndico e muito menos o nome dos vizinhos. Estava na cidade em função da “Residência”. Não pretendia fazer amigos nem ficar por muito tempo naquela cidade que aumentava, a cada dia, a sensação de distância de Porto Alegre.
Abrindo a porta do pequeno apartamento percebeu a confusão, provocada por ele mesmo, da noite anterior. Cama por fazer, roupas espalhadas por todo lugar, louça suja na pia. Tudo aquilo era deprimente para ele e tornava-se pior porque não tinha testemunha a não ser a sua consciência – essa sim: tão onipresente quanto implacável.
O médico colocou o pijama que encontrou no chão. Leu, assistiu televisão, viu que a noite era completa e decidiu, como fazia com frequência, encomendar, por telefone, algo para jantar.. Às onze horas, chaveou a porta, apagou as luzes e deitou-se na tentativa de dormir. Agora era um temporal que caía na cidade. A chuva batia na janela com força.
Às três horas da madrugada, em meio a um sono profundo, foi acordado por batidas na porta. Quem é? - perguntou assustado e preparando-se para pegar um revólver que guardava no armário.
Doutor, sou sua vizinha, meu nome é Alice e o senhor não me conhece, mas me disseram no prédio que o senhor é médico. Não me sinto bem. O senhor poderia me atender? - perguntou a voz, evidentemente de uma mulher de idade, do outro lado da porta.
Não, Dona Alice. Me desculpe. Por favor, telefone para emergência e chame alguém a senhora mesmo.
Ninguém respondeu. Esperando alguns instantes mas lembrando-se de que deveria estar no hospital às sete horas, voltou para cama. Custou a encontrar o sono, mas finalmente dormiu.
Ainda noite escura e quase seis e meia da manhã do dia seguinte o médico descia pelas escadas do pequeno prédio. A senhora de idade, faxineira que ele já conhecia, limpava a entrada do edifício.
Bom dia – disse ele abrindo a porta que dava para a rua. Ontem uma vizinha, uma tal de Dona Alice, às três horas da manhã sentiu-se mal e bateu na minha porta pedindo ajuda. A senhora sabe se está tudo bem com ela?
Olhe, digo ao senhor o seguinte, doutor – respondeu a faxineira que era uma das poucas pessoas conhecidas por ele além dos colegas e funcionários do hospital – Não sei quem bateu na sua porta, mas não era Dona Alice, isso eu lhe garanto.
Por que a senhora tem tanta certeza? - perguntou o médico.
Porque ela morreu, doutor. A polícia foi chamada ontem para entrar no seu apartamento. Retiraram o corpo por volta das cinco horas da tarde. Acho que o senhor ainda não tinha chegado em casa.
Para Maria Amélia Bergamin
Porto Alegre, 9 de março de 2015.