A Boca!
Ao retornar da cozinha Cláudio estacou sob o batente da porta, estarrecido. A maior parte do piso da sala não estava mais lá, e em seu lugar havia apenas uma gigantesca boca, que falava com uma voz ribombante e se dirigia a ele:
- Você sabia que isso podia acontecer, - disseram os lábios enormes, mais grossos do que o corpo de um homem - e agora você é meu!
O pobre rapaz engoliu em seco, apavorado. Ele jamais imaginara que aquilo pudesse ocorrer tão rapidamente. Apertando a cabeça com as mãos tentou pensar no que fazer. Devia haver alguma forma de escapar do terrível destino que aquilo prenunciava.
- Não, eu não tenho nada a ver com você. Desapareça e me deixe em paz! – Gritou ele para aquela coisa enorme que do chão lhe sorria ironicamente, de parede a parede.
- Não tente agora fugir das consequências de seus atos! – Bradaram os lábios de um rubro sanguíneo e sobrenatural, enquanto uma espuma nojenta se acumulava em seus cantos. – Você só tinha uma única responsabilidade e fugiu dela por um capricho egoísta e sem sentido. Agora terá que pagar por sua leviandade, e sabe que não há como escapar do que o aguarda.
Cláudio suava frio, pensando furiosamente. A janela! Talvez ele conseguisse alcançá-la se corresse pela lateral do pequeno cômodo, junto à parede, e saltasse sobre a horripilante abertura em que o carpete mofado se convertera onde ela era mais estreita. A queda do oitavo andar o mataria com certeza, mas mesmo a morte era preferível ao que o aguardava no fundo daquele abismo.
- Nem adianta tentar isso, - disse a coisa no chão, adivinhando seus pensamentos - mesmo que conseguisse passar por mim, a tela o impediria de escapar.
O rapaz lembrou-se então de que aquilo era realmente verdade. Quando sua família se cotizara e comprara para ele aquela quitinete havia tentado ao máximo encontrar um imóvel no primeiro andar, já prevendo algo como o que agora sucedia. Depois de alguns meses de buscas infrutíferas, contudo, isso se mostrara impossível pelo preço pretendido. Por isto acabaram por adquirir uma unidade em um andar mais elevado, mas mandaram instalar as telas de proteção, imaginando desde o início que pudesse ocorrer o pior. E assim o pequeno apartamento se tornara uma armadilha inescapável, pois a porta ficava do outro lado e ele não tinha como chegar até lá sem se colocar ao alcance da boca monstruosa.
- Venha, de nada lhe servirá prolongar ainda mais esta agonia. Entregue-se e garanto que tudo terminará rapidamente e quase sem dor. – Insistiu a entidade encravada no piso, tentando dar à sua voz um tom amistoso que Cláudio sabia ser inteiramente falso.
Com o arrependimento queimando em sua alma o jovem olhou além dos lábios que pronunciavam para ele promessas mentirosas e observou os dantescos dentes que tentavam se ocultar por detrás do vermelho intumescido. Brancos como marfim, eles tinham um aspecto quase humano mas eram afiados como os das mais selvagens feras. E além deles não havia língua, palato ou garganta, mas apenas uma negritude fantasmagórica que prometia as agonias de uma queda infindável. Cair ali seria o princípio de um tormento eterno, do qual ele jamais conseguiria escapar.
Por quê? O que ele fizera para merecer tamanho castigo? É claro, ele sabia que tinha uma responsabilidade, a única que precisava inexoravelmente cumprir e que num rompante de rebeldia abandonara. Mas isso não era justo! Ele jamais quisera aquilo, nem fizera nada por merecer tal maldição. Ninguém em sua família ou entre todos os seus conhecidos tinha a mesma obrigação, que o fazia sentir-se diferente, estranho, desprezado e isolado. Por causa de sua sentença todos fugiam dele com medo ou repulsa, e este fato o levara a revoltar-se e a ignorar os rituais que estava condenado a seguir pelo restante de sua vida. E por isso agora o chão do próprio lar que foi adquirido para ele pelos que deveriam ser seus entes queridos, mas que o haviam abandonado ali para ser esquecido, transformara-se na sua nêmesis e ameaçava engoli-lo.
- Vá embora, já disse! – Gritou novamente Cláudio, sentindo uma vertigem causada pelo desespero de saber que o que estava por acontecer era de fato consequência das suas escolhas. – Eu não fiz nada demais, apenas tentei levar uma vida normal, como qualquer um. Não é culpa minha!
- Isso não interessa mais, agora é tarde para desculpas ou arrependimentos. Seu destino já está traçado, e eu sou o instrumento que irá concretizá-lo. Venha, seu tempo acabou!
E assim que a boca gigantesca concluiu esta frase o piso do pequeno apartamento inclinou-se subitamente, transformando-se em uma rampa que levava diretamente na direção do negro abismo. Pego de surpresa pela mudança inesperada Cláudio ainda tentou girar o corpo e fugir de volta para a cozinha, mas perdeu o equilíbrio e tombou para trás, começando a cair de costas para dentro da bocarra escancarada que o recebia com uma gargalhada malévola e ensurdecedora.
E enquanto caía presa do mais absoluto pânico para dentro de seu terrível destino, o pobre rapaz ainda percebeu pelo canto dos olhos o objeto que era a causa de seu infortúnio, e que em um rompante de irresponsabilidade atirara para o lado naquela manhã, se recusando a cumprir o ritual que todos esperavam dele: O pequeno, escuro e soturno frasco de seu medicamento antipsicótico.