O Resistente

O velho era uma sombra do que foi na juventude e na idade madura. Magro, doente, esquecido, arrastava-se pelo casarão de varanda colonial para ver a terra a toda a volta da casa encher-se de ervas daninhas e as árvores de fruto sem poda nem tratamento. Sacudia a cabeça em desaprovação mas remetia-se ao silêncio. Ficava horas na cadeira de balouço, imóvel, à espera que findasse o dia e o chamassem para o caldo. Todos os filhos estavam criados e a todos dera grande parte dos bens. Com ele ficou a filha solteira, Henriqueta, uma mulher azeda e sem brio que trovejava ao menor reparo. Alheou-se, modorrento, entrando deliberadamente numa espécie de neblina que lhe amortizava a sensibilidade para o declínio de tudo, da casa à família, da saúde à companhia. Um dia perdeu os sentidos e levaram-no para o Hospital. Estava debilitado, senil, gasto. Achavam que poderia viver talvez um mês, talvez nem isso. Prática, Henriqueta reuniu o dinheiro necessário e escolheu a urna, os panejamentos roxos e os castiçais para o féretro bem como a coroa de flores e pagou tudo adiantado dizendo que, depois, lhes diria quando e onde teriam de proceder ao levantamento do corpo. E, para espanto dos responsáveis da funerária, tardava o contacto, a ordem não vinha e a urna atravancava a loja. Olhavam-na já como estorvo por estar paga e o espaço que ocupava fazer falta. Um dia, fartos de esperar, descarregaram na morada que tinham tudo o que Henriqueta comprara a saber: uma urna de pinho com vistas em carvalho e pegas de ferro dourado, uma coroa de flores com os dizeres “ Eterna Saudade de Seus Filhos e Noras” e avisaram que os panejamentos, o crucifixo de bronze e os castiçais eram alugados pelo que não seriam entregues. E viu-se Henriqueta diariamente confrontada com a urna do Pai e ele sem dar mostras de querer morrer. Apoquentou-se. Tão forte que era e tão fraca se achava, tão pálida. Perdera o apetite e, quando o Pai, renovado, pelos seus meios chegou a casa a emoção foi mais forte e acabou por não resistir. – Acudam que morro, acudam, gemeu antes de cair nas lajes da varanda. Apesar de muito maior que o seu tamanho levou a urna sem crucifixo e ninguém trouxe flores. O pai continua a ver as terras e a aguardar que a empregada o venha tratar.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 18/02/2015
Código do texto: T5141821
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