CONSCIÊNCIA ALÉM DA MATÉRIA

CONSCIÊNCIA ALÉM DA MATÉRIA

Dentre as várias histórias insólitas que têm vindo interpelar meu caminho racional de homem de ciência, e obrigar-me à reflexão profunda e à mente aberta, há algumas que considero particularmente instigantes. São aquelas que envolvem o que se convencionou chamar experiências fora do corpo, atualmente sintetizadas na sigla EFCs. Já há alguns anos, vários de meus clientes em neurologia e psiquiatria têm se referido a vivências desse tipo, de modo que, como médico, senti-me obrigado a me informar sobre a questão.

As chamadas experiências fora do corpo, ou EFCs, são situações em que o indivíduo sente como se estivesse percebendo o mundo, as coisas, as pessoas e a si mesmo de uma perspectiva fora da de seu próprio corpo. Também conhecidas por outros nomes (desdobramento, viagens astrais, voo anímico, voo xamânico, projeção da consciência, projeção psíquica, etc) as narrativas sobre as EFCs em geral citam um outro corpo, pelo qual a pessoa abandona o seu corpo físico. Um corpo muito parecido com o corpo material, mas de natureza mais sutil, leve, em geral translúcido, e que permaneceria ligado ao físico por um tipo de corda ou cordão, que a literatura especializada chama cordão de prata. O interessante dessa questão é que as EFCs são fenômenos universais, que têm sido narrados há milhares de anos, em diferentes culturas, religiões, ou mesmo fora de qualquer religião organizada.

Diferentemente da maioria dos meus colegas, considero as EFCs como algo além de manifestação psicopatológica (em geral leve) pura e simples. Não que uma dita experiência fora do corpo não possa fazer parte de um quatro de psicopatologia. Claro que pode! Apenas não concordo que ela seja limitada a isto. Há muitos casos de sujeitos plenamente saudáveis, tanto física, quando psiquicamente, que relataram experiências bastante consistentes de aparente exteriorização da consciência. Tampouco acredito que as EFCs sejam necessariamente episódios alucinatórios, embora ocasionalmente possam sê-lo. Mas, ao menos hipoteticamente, elas parecem ser um fenômeno real, em que a consciência efetivamente percebe as coisas de um ponto de vista exterior ao habitual. Isto pode acontecer por diversos motivos, ainda não compreendidos por nós, e não descarto a sua natureza como sendo a de um distúrbio do sono ainda desconhecido. Reconheço: esta é, por si só, uma posição, se não inédita, ao menos incomum no meio científico brasileiro.

Dentre as narrativas de EFCs que têm sido apresentadas a mim, ultimamente, alguns casos específicos — três ocorrências, para ser exato — chamaram especialmente a minha atenção e, sem necessariamente contradizer as hipóteses que esbocei aqui, levantaram outros aspectos, igualmente ricos, que podem conduzir minhas reflexões numa direção ligeiramente diferente. Vou deixar que os próprios protagonistas dessas EFCs narrem para vocês as suas aventuras como narraram para mim. E depois comentarei cada um desses casos. Sempre hipoteticamente e sempre em aberto, claro.

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EFC nº 1

Características gerais: mulher, meia idade, solteira, filha de pai militar e mãe professora de piano, psicóloga (na ocasião vivendo da pensão do pai militar ), moradora da zona sul do Rio de Janeiro. Era minha paciente, em meu consultório de Copacabana. Queixava-se de depressão e dificuldades em conciliar o sono.

“ (...) mas naquela noite adormeci e tive o que me pareceu um sonho muito estranho: estava dormindo em minha cama, quando subitamente me dei conta de estar flutuando no quarto, ligada ao meu corpo por uma espécie de cordão prateado, que saia da parte final da minha coluna lombar e se ligava à do umbigo, naquele corpo brilhante que eu parecia ser, ali no alto, flutuando. Via claramente o meu corpo material imóvel , deitado na cama, dormindo placidamente. Sem nenhuma dificuldade, atravessei as paredes do meu quarto, no 10º andar de cobertura do Leblon, onde moro, e fui passando pelas paredes de concreto dos outros prédios, como se fossem de fumaça. Segui flutuando a uns mais de 20 metros de altura, pelas ruas e praças da vizinhança,e quando me dei conta, estava no antigo casarão da família onde minha avó e avô maternos, juntamente com uma tia solteirona, criaram a minha mãe, que era filha única. Ao adentrar no ambiente, sem nenhuma dificuldade, pelas paredes de alvenaria da velha casa , percebi que minhas faculdades mentais estavam íntegras. No fundo não parecia realmente um sonho.Eu estava acordada, consciente, apenas fora do meu corpo, por mais estranho que isto possa parecer. Essa constatação me deu um certo medo de deparar com figuras estranhas e ameaçadoras, no interior daquela casa. De fato, percebi claramente a presença de inúmeras pessoas descarnadas, que usavam roupas de várias épocas e pareciam conviver harmoniosamente naquele espaço. Inclusive os meus avós, que me reconheceram e me saudaram efusivamente, mostrando-me outros familiares, que eu não havia chegado a conhecer (morreram antes de eu ter nascido). A sensação de medo e desconfiança desapareceram quase que por encanto, dando lugar uma sensação de profunda paz. Uma emoção agradável começou a me invadir, quando, de repente me senti puxada para o meu corpo físico. Fiz o caminho inverso em poucos segundos, e entrei suavemente no meu corpo inerte , imóvel, e ... acordei! Sentia-me em paz. Em paz comigo mesma, com a vida, com as pessoas. Não tinha mais a sensação de haver sonhado, e sim de ter tido uma saída real do corpo. Procurei me informar a respeito, pela Internet, e achei muita coisa sobre as “viagens fora do corpo”, que têm tudo a ver com a minha experiência. Mas sabia que precisava conversar com você, meu médico, que com certeza vai me ajudar a elucidar isto (...)”

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EFC nº 2

Características gerais: aqui não se trata de uma paciente, como no caso anterior, mas de minha esposa, Zélia; médica, como eu, meia idade, moradora da zona sul do Rio de Janeiro.

“(...) Naquele domingo, como em todos dos últimos anos, meu marido saía para o plantão, como neurocirugião no Hospital Getúlio Vargas, na Penha, que iniciava às 20h e terminava às 8h da segunda feira, de onde emendaria numa rotina (de médico brasileiro!) que só lhe permitiria chegar em casa, extremamente cansado, depois das dez da noite daquele mesmo dia. Assisti televisão e fui dormir, tendo como companhia os nosso dois gatos, Xana, uma adorável vira-lata preta (...) e Luca, um macho, siamês, que compramos para fazer companhia à dama de negro. Na ocasião deste relato, Xana tinha tido sua primeira cria, dois machos e três fêmeas, todos... pretos que nem a asa da graúna. Ela ficava aninhada com os seus cincos carvõezinhos numa caixa de papelão, na porta do quarto, enquanto o Luca, dengoso e medroso, dormia comigo na cama, bem no lugar do Paulo ( ai se ele soubesse...). Eu havia recém me deitado, e não tinha ainda atingido a fase REM do sono (Rapid Eye Moviment) , quando, de repente, uma intensa paralisia começou a tomar conta do meu corpo. Não conseguia movimentar nenhum músculo sequer, e aquilo me deixou nervosa (paralisia do sono?). Logo a seguir, senti um forte ruído nos ouvidos, como se alguém ou alguma coisa quisesse me dizer algo. Lutei para me livrar daquela paralisia e daqueles ruídos, mas em vão. A paralisia continuava e os ruídos iam aumentando cada vez mais, até tornaram-se vozes balbuciadas e baixas, mas incompreensíveis! Comecei imediatamente a rezar, pedindo a Deus para pôr fim àquele tormento. Minhas preces foram ouvidas, e consegui me livrar daquela horrível paralisia, mas notei que havia algo estranho. Estava com o nariz a poucos centímetros do teto, e ao me virar para baixo, constatei, embasbacada, que meu corpo estava lá embaixo, dormindo. Tive medo de cair e tentei me segurar na parede. Meus braços esticaram, como se fossem de borracha ( parecia aquele super-herói dos gibis antigos, o Homem Elástico). Foram na direção das paredes do quarto, mas as atravessavam como se fossem feitas de manteiga! Não havia outro jeito: eu teria de usar toda a minha forca mental para voltar ao meu o corpo, que jazia lá embaixo, imóvel (...) Tanto tentei que consegui, e ao entrar no meu corpo, senti que estava em plana posse de todos os meus sentidos, e ainda percebia um resto angústia,e toda a gama de sensações que a paralisia do sono apresenta. Mas precisei reconhecer: aquela situação de flutuar fora do meu corpo físico havia sido extremamente agradável e plena de serenidade. Isto fez com que toda angústia e todo medo desaparecesse e eu me sentisse realmente em paz. Percebi, de imediato, os olhos azuis e arregalados do meu gato Luca que, medroso como era, partiu como uma bala, acordando a Xana que estava na porta do quarto, com suas crias. Ela pareceu perceber que algo de anormal estava acontecendo e não perdeu tempo: pulou para cima de mim e freneticamente me lambeu, me mordeu, olhando-me assustada, e parecendo ver alguma coisa que estaria atrás de mim (mas que me era invisível...). Sentei-me devagar, e percebi que havia fortes dores no meu dedo anular esquerdo. Fiquei atônita ao verificar que a minha aliança estava totalmente deformada, em forma elíptica, no referido dedo, e com grande dificuldade a retirei. Quando Paulo chegou, narrei-lhe o acontecido e mostrei a aliança. Ele ficou muito impressionado: ‘Que força magnética você terá desprendido nessa sua parassonia , para chegar ao ponto de abalar a estrutura do anel? Só mesmo um ourives poderá desamassá-lo sem quebrá-lo!’, disse, espantado. Havia sido Xana, com a sua coragem e determinação, que acabou me acordando e me tirando dessa situação que Paulo denominara de ‘parassonia’. Procurei por Luca, por toda a casa, e só a muito custo encontrei o medroso encolhido, assustado e tremendo, escondido atrás das cortinas da sala! Francamente, Luca... Na ausência do Paulo, você era o homem da casa! Mas, afinal, dessa situação estranha e intrigante ficou a pergunta: parassonia, saída astral do corpo... o que foi aquilo, afinal de contas? E por que a minha aliança ficou em forma elíptica, retorcida, a ponto de machucar o meu dedo?”

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EFC nº 3

Características gerais: este é o primeiro e único caso acontecido com um homem que narrarei aqui. E este homem... sou eu mesmo! Sim, eu passei por uma situação que talvez possamos considerar uma experiência fora do corpo. Da mesma forma que a EFC de minha esposa, a minha trouxe características bastante diferentes das saídas em geral. Não com efeitos físicos, como foi o caso do que aconteceu com a aliança de Zélia, mas na própria percepção que tive de mim mesmo. Isto ficará mais claro à medida em que faço a minha narrativa. Vamos a ela:

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“Era uma noite calma de final de outono, em que atipicamente fazia muito calor, e eu me preparava para dormir. Como de hábito, fiz mentalmente o meu relatório do dia, por meio do qual eu verificava se – atribulado quanto ele tive sido (e normalmente era!) - todas as coisas haviam ficado a contento, quais deveriam ser refeitas, ou concluídas, e assim por diante. Depois deixei aquilo de lado e relaxei mental e fisicamente. Iniciei o meu relaxamento, começando pelos pés, desde os ossos, ligamentos, músculos e pele, subindo paulatinamente até chegar à cabeça. Em geral, quando chego aí já estou sonolento. Outras vezes nem me lembro de haver chegado à cabeça e durmo no meio do exercício. Dessa vez eu estava na fase REM do sono ( Rapid Eye Moviment), que é quando sonhamos. Senti-me flutuar, o que não chegava a ser incomum, nesta fase. E não é raro que aconteça a um grande número de pessoas, na hora de dormir. Alguns estudiosos interpretam essa sensação como resultante de um certo grau de anestesia natural do corpo, causada pela permanência do mesmo na mesma posição (no caso, decúbito dorsal) por um tempo excessivamente prolongado. Mas aquela sensação foi ficando cada vez mais pronunciada, mais forte, a ponto de eu sentir como se estivesse balançando docemente, ao mesmo tempo em que me parecia estar me elevando, subindo... Minha consciência ficou um pouco diferente. Como se eu emergisse daquele estado hipnagógico , não para a vigília normal, mas para um estado diferenciado, no qual estou consciente, vígil, mas numa solução de impessoalidade, como se eu expressasse uma personalidade maior, em mim mesmo, e o Paulo que sou, de ordinário, ficasse, por assim dizer, subjacente, como se fosse uma qualidade minha, como a profissão, por exemplo, mas não fosse eu mesmo. Ou não totalmente. Mas permaneço sendo eu mesmo, por contraditório que isto pareça. Talvez eu possa me expressar melhor, se disser que, naquele momento, eu era mais eu mesmo do que sou de ordinário, sem perder de vista a minha identidade corriqueira. Difícil explicar. É um tipo de estado ampliado de consciência. Ainda assim, eu estranho, quando percebo que minha flutuação continua, amplia-se, aprofunda-se e, quando dou por mim, estou simplesmente fora do meu corpo! Admiro-me daquilo, mas é um curioso tipo de admiração serena, em que não há desassossego ou excitação. Deixo-me levar por aquilo, e flutuo até o teto, onde permaneço por instantes, numa oscilação suave, como um balão de gás, docemente tocado por uma brisa. Apesar daquele estado incomum de consciência, não estou irracional. Mantenho um senso crítico funcional, e é esse senso crítico que me leva a raciocinar e considerar que, aparentemente, estou vivendo aquilo que hoje é conhecido como experiência fora do corpo, ou EFC. ‘Se for mesmo uma EFC, posso tentar dominar isto, e descer do teto para o chão’, racionalizo. Mal penso isto e estou descendo suavemente para o piso do quarto. Fico ali, flutuando, a poucos metros da cama, onde vejo deitadas duas pessoas: Zélia... e eu mesmo. Ou o meu corpo, melhor dizendo, porque a minha sensação de eu está aqui comigo, neste outro corpo que pareço ser agora. Um corpo onde me reconheço, mas é ligeiramente diferente. Leve como uma bolha de sabão, sutil, translúcido... E no entanto... sou eu mesmo! Entre eu e meu corpo que dorme a sono solto, na cama, parece haver um fluxo de energia que os liga, à semelhança de um cordão luminoso, aliás bastante semelhante a um cordão umbilical, apenas sutil e tecido em luz, em vez de carne. Sinto uma certa curiosidade em ir até perto de meu corpo material adormecido, para olhá-lo de perto, mas alguma coisa me diz que devo evitar isto. Sinto como se uma força magnética, de atração, agisse de forma a me puxar na direção daquele corpo. Eu resisto. Não quero interromper aquela experiência única, e penso num jeito de sair dali. Não passa pela minha cabeça coisas como “e seu eu não conseguir voltar?” Para mim, voltar é uma coisa que acontecerá de qualquer jeito. A minha dificuldade não parece ser sair do corpo, porque sair eu já saí! O difícil agora me parece ser ficar fora do corpo, pelo menos o suficiente para explorar ao máximo aquele estado de consciência. A força de atração parece ser exercida por meio daquele cordão luminoso e eu sinto que tenho de sair dali o mais rapidamente possível, para evitar ser sugado de volta ao corpo, abortando assim aquela experiência tão rica. Num átimo, vem-me à mente a imagem de meu irmão! Ele estava lá, no fundo de meu inconsciente, como preocupação, pelo seu estado de saúde delicado. Talvez aquele estado de relaxação tão profundo em que eu estava tenha relaxado também aquelas defesas mentais, com as quais colocamos temporariamente de lado certos problemas, para podermos atuar funcionalmente, trabalhar, resolver outras questões, etc. Não sei. O fato é que ele me veio à mente com uma clareza única, e desejei intensamente estar com ele. Mal pensei nisto, e o ambiente ao meu redor pareceu mudar totalmente. Como num fade de cinema, em que uma cena vai substituindo a outra harmoniosamente, sem choque ou cortes bruscos. Eu estava à cabeceira de meu irmão, que dormia um sono agitado. Não pensei no que fazer, e agi por uma espécie de instinto. Apenas emanei amor para ele, tranquilamente, sem nenhuma ansiedade. Não sei por quanto tempo fiz aquilo, o fato é que ele pareceu tranquilizar-se. Senti que deveria retornar, e assim o fiz. Desta vez não houve aquele fade diretamente do quarto de meu irmão para o meu. Dei por mim flutuando na rua onde moro, e indo na direção de uma janela fechada, que parecia ser a do meu quarto. Atravessei a janela e a parede, como se atravessasse um tipo de bruma, mas tão logo entrei no quarto percebi que havia alguém (ou alguma coisa?) lá dentro. Fosse o que fosse aquilo, era alguém ou algo autoconsciente, e um intruso. Ataquei rapidamente. Lutamos selvagemente, num brutal impacto, como dois animais ferozes, sem reservas, sem parar para pensar. Foi tudo muito rápido e aquela coisa fugiu, escapando pela janela pela qual eu havia retornado. Senti que havia algo estranho comigo (como se aquilo tudo já não fosse estranho o suficiente!) e percebi que meu corpo, o corpo sutil pelo qual eu me expressava ali, havia mudado radicalmente de aparência. Eu estava maior, mais forte. O corpo parecia coberto de pelos, e ao colocar as mãos no rosto, instintivamente, percebi que ele se havia alongando, ainda humano, mas mesclado com o de um cão, ou um lobo. Achei aquilo estranho, claro, mas eu ainda estava muito tomado por aquela agressividade sem precedentes, para que tecesse qualquer consideração em relação àquilo. Senti um puxão e olhei para a cama, onde jaziam os corpos adormecidos de Zélia e o meu. O puxão parecia vir do meu corpo, que exigia meu retorno. Meus olhos se fecharam, e quando os abri, logo em seguida, vi o teto do quarto, e percebi que estava no corpo novamente. Toquei meus braços, o ventre e o rosto. Não havia qualquer resquício daquela aparência assustadora de poucos instantes atrás...”

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“O Paulo pirou”, devem estar pensando alguns de meus colegas psiquiatras. Mas não tinha jeito. Eu precisava ser honesto e contar a minha experiência em detalhes, sem omitir mesmo os mais estranhos. Mas não estou tão sozinho assim, e houve psiquiatras muito, mas muito importantes que viveram EFCs extremas, com foi o caso de Carl Gustav Jung, que experenciou uma delas em 1944, por ocasião de uma experiência de quase morte, deflagrada por um ataque cardíaco. Ele narra que não só saiu do corpo, como saiu da Terra e flutuou de longe, enquanto a observava. Foi o primeiro homem a dizer que a Terra é azul, e isto 17 anos antes do ser humano ir oficialmente ao espaço... Se Jung pirou também, então me sinto mais à vontade quanto a isto tudo.

Mas vamos refletir um pouco. Não quero analisar nada do que foi narrado aquilo, nem interpretar essas experiências, o que agora seria superficial e, aí sim, uma piração! Mas não custa pensar um pouco a respeito. E então cabe a pergunta: teríamos realmente saído do corpo os três — minha paciente, minha esposa e eu mesmo? Eu diria que... sim! Por mais estranho que isto pareça, quando alguém vive o que nós três — e milhares de pessoas ao longo da História e em praticamente todas as culturas — vivemos, não há dúvida. A vivência é axiomática, evidente por si mesma. Inclusive considerando-se o fato de que, de nós três, nenhum pode ser considerado delirante, psiquicamente enfermo, e somos os três razoavelmente normais (de perto ninguém é normal, já dizia o poeta). Por outro lado, nenhum dos três estava procurando por tais experiências, ninguém dentre nós fazia exercícios ou qualquer outra prática visando sair do corpo. Talvez houvesse condições íntimas, em cada um, que favorecessem as experiências. Vamos raciocinar um pouco, à luz de cada caso?

EFC nº 1 – Minha paciente ansiava por um sono realmente reparador. A relaxação alcançada (suficiente para facilitar uma EFC) parece ter sido resultado desse desejo, que ela pode, num certo momento, ter conseguido exercer sem ansiedade. Alguma coisa em relação à família poderia estar incomodando-a, e a primeira coisa a chamar a sua atenção foi o casarão da família, um referencial claramente fundamental para ela. Também seus medos (de figuras ameaçadoras que pareciam prestes a surgir) transformaram-se numa espécie de resgate do seu passado e de sua ancestralidade, porque foram os seus antigos que ali surgiram, e aquilo foi uma experiência prazerosa para ela. Um trabalho mais aprofundado sobre este caso pode revelar muito mais, e tornar ainda mais claro o quanto essa EFC foi útil e construtiva para a psique daquela que a viveu.

EFC nº 2 – Aqui, independentemente dos muitos outros aspectos que Zélia poderá (ou poderia) levantar, junto a um psicoterapeuta (eu sou apenas o marido, lembram?), uma coisa fica bastante clara: desenvolvia-se nela a necessidade de uma afirmação do feminino. Uma proclamação da força e do vigor da feminilidade, de sua independência, sem que isto significasse conflito com o masculino. A própria reação dos gatos — a fêmea tomando a frente dos problemas, enquanto o macho fugia assustado — parece ser indício desse processo. A força da energia emitida para deformar a aliança (seja qual for a natureza dessa energia e dessa força) parece caminhar também nessa direção. A energia despendida parece visar, sobretudo, a mudança nos critérios do casamento, nas relações feminino/masculino que ele contém. Muda-se a forma da aliança, para que ela seja rearrumada numa nova aliança.

EFC nº 3 – Bem, a minha EFC é a mais estranha, reconheço, mas parece-me a mais emblemática, a mais fácil de entender. A vontade de proteger minha família — particularmente aguda, naquele período — e a minha intensa preocupação com meu irmão, aliados ao extremo cansaço do corpo físico (o que o tornava, certamente, menos disponível) e ao exercício de relaxação fragmentária, que só depois vim a saber que é uma das práticas utilizadas para se provocar EFCS, talvez não expliquem tudo. Mas, sem dúvida tornam muito mais claro e explicável o quadro em que se deu minha saída do corpo.

Enfim, o que fazer com isto? Certamente, o reducionismo com o qual costumamos negar aquilo que foge aos nossos paradigmas de normalidade não é a melhor solução. Talvez seja preciso descer do altar da ortodoxia, onde nos recostamos confortavelmente, e navegar um pouco em outras possibilidades, por mais insólitas ou imponderáveis que elas nos pareçam. Mas não é assim, em geral, que se dá os primeiros passos, rumo a novas e enriquecedores perspectivas? Em síntese, não é isto que constitui a verdadeira evolução?