Perpétua paixão

Egresso - ou ejetado - do seminário, eu viera de me instalar naquela prestigiosa, e mais ainda presunçosa, pensão que se denominava, pomposa, "República do Nelson". E não deixava de ter seu charme o dito

refúgio. Só rapazes, como prazia a Dom Nelson, com seus bigodes bem cultivados, falar macio, pança que transbordava a qualquer tentativa de enquadramento e a incrível risca perpendicular a lhe marcar a testa -

como se ele tivesse, feito fazia o Sargento Garcia, enfrentado o azorrague de um Zorro, sem socorro.

Ainda estudante do último ano colegial, não fazia eu parte daquela seleta confraria de pensionistas que se empregavam em bancos e outras instituições de prestígio. Aqueles moços fulgurantes eram o centro das atenções da sociedade local - divinopolitana, por sinal, de cruz e truz - e que não mais precisavam se dar ao árduo trabalho do dever de casa e, muito menos, ter que fazer fiu-fiu pras moças que, isoladas, ou em pencas, transitavam pelos passeios frontal ou lateral da

'República' sobraçando livros, mistérios e ilusões de partir corações... Já tavam com as vidas ganhas e para eles convergiam todas as atenções.

Era o telefone que não parava de tocar, era um recado que Dom Nelson da rua lhes trazia, era carta de amor que lhes chovia...

Na minha ansiedade para ver aquele ano passar, e logo acabar, o convívio com os livros não era páreo para o fascínio com a buliçosa movimentação vespertina dos arredores da pensão, rotas de tanto colégio, ou outro destino não menos egrégio...e régio, a boemia, quem diria?

E foi numa boca de noite daquelas que, ainda hesitante entre o juvenil e o varonil, costas coladas contra a parede externa de meu quarto, criei coragem para exercitar meu fiu-fiu - que retumbante fracasso

exibiu. Nada, nem ao menos uma imprecação de retorno.

Mas não me dei por vencido, convencido de que estava que o que ali rolava eram manhas de Cupido, sempre cheio de alibi para a libido. Até que, dias de treinamento me refinaram a técnica do chamalamento, ou quiçá, despertaram o sentimento da caridade alheia, na forma robusta e rechochuda de uma Perpétua, cuja atenção em relação a mim, fez tudo à volta parecer efêmero - e só ela, Perpétua.

Cabelos negros, fartos, sorriso espontâneo, falou-me de seus estudos

noturnos, sem muito entusiasmo, e ainda mais realista, confidenciou-me que no curso do dia, empunhando sua peixeira, era açougueira. E um endereço, com certo apreço, me deu: Rua da Bahia, 380.

Sentindo na alma, e na carne, aquela perspectiva de quebrar meu desencanto, alternei lucubrações alcovais com retornos àquele mesmo passeio, mas não voltei a ver a amabile signorina. Teria mudado de rota, de colégio, se vitimado com seu instrumento de trabalho? Tampouco

fui à Bahia, que tudo guardou, ela que tanto sabia.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 12/02/2015
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