646-JOÃO TEIMOSO
JOÃO TEIMOSO
Ninguém ganha um apelido por acaso. Nem João Teimoso. Seu nome era João Mario Gusmão e o apelido lhe caíra bem tanto pelo aspecto físico como pelo seu temperamento.
Baixo, não passava de um metro e sessenta. Gordo, pesava mais de 100 quilos. Sua figura lembrava bem o João Teimoso, um boneco inflável, todo arredondado, que, devido a um peso na parte inferior, mantinha-se sempre na posição vertical. Por mais que se o colocasse deitado, de lado, ou mesmo, de ponta cabeça, voltava sempre à posição vertical. Com olhos bem abertos e um sorriso idiota na boca. O João Teimoso era brinquedo comum na época da infância de João Mário.
Mas o que determinou mesmo o apelido foi a forte personalidade de Joãozinho: embirrava por qualquer coisa, batia o pé, chorava e sempre conseguia o que queria. Era teimoso como nenhum outro garoto de seu tempo. A teimosia foi aumentando à medida que passou pela adolescência, juventude e até fixar-se como a principal característica pessoal quando homem feito.
Tornou-se bancário, onde o apelido o acompanhou, pelos mais variados locais e agencias onde trabalhara.
Pediu transferência para Brasília, quando a capital estava nos primeiros anos de existência. Não gostou do local nem dos colegas. Um dia, voltou para a agência anterior, sem nenhum pedido de transferência. Chegou à agência, sentou-se à escrivaninha que ocupava antes de ter ido para a capital nacional, e afirmou:
— Daqui não saio, daqui ninguém me tira!
O gerente, conhecedor do ânimo de João Teimoso, ajeitou as coisas:
— É um testudo, merece o apelido. Mas é bom funcionário. Manoel (era o funcionário que melhor escrevia o vernáculo) você redige um requerimento de transferência e vamos deixá-lo trabalhando aqui na agência.
Gordinho desde criança, João Teimoso tornou-se obeso na idade adulta. Patologica-mente obeso. Em conseqüência, não fazia exercícios e comia cada vez mais. A pressão sanguínea se descontrolou. Os rins não funcionavam direito. Varizes nas pernas. Hemorróidas. Cansaço constante.
— Vou lhe receitar um moderador de apetite. — Disse-lhe o médico — Mas o senhor vai ter que fazer força, comer menos. Ou o senhor perde uns bons quilos, ou seus problemas de saúde vão piorar. E a pressão irá subir cada vez mais.
Solteiro, João Teimoso morava sozinho, num quarto de pensão. A sua teimosia o levara ao isolamento e à misoginia.
Quando o médico lhe recomendou comer menos, pegou o conselho ao pé da letra. Requereu um período de férias, dizendo que em três semanas ele voltaria “outro homem, vocês verão”.
João Teimoso fechou-se no quarto da pensão. Não saia para nada, e simplesmente deixou de fazer as refeições. Seu Camargo, o dono da pensou, notou a ausência de João Teimoso à mesa das refeições e o procurou.
— Estou de regime. Não se preocupe comigo. — Disse ao Camargo.
No Banco, a absoluta ausência de João Teimoso foi levada à conta de sua teimosia.
— É, ele disse que ia emagrecer e está fazendo o que prometeu. — comentou Manoel, após visitar o colega. — Diz que não está comendo nada. Brincou, falando que fechou a boca com esparadrapo. Já emagreceu muito.
A notícia estourou como uma bomba, quinze dias após o início das férias de João Teimoso. Seu Camargo chegou esbaforido na agência e do balcão falou alto para que todos escutassem:
— Gente, aconteceu uma desgraça! O João Teimoso morreu!
Como foi? Como não foi? — as perguntas pipocaram de todas as bocas. O gerente pegou o Camargo pelo braço e saiu depressa, rumo à pensão. No caminho, Camargo tentava explicar, mas não conseguia.
O gerente entrou no quarto onde jazia o corpo. Deitado na cama parecia estar dormindo. Apenas a cor branca, conhecida como “cor de vela”, denotava o estado mortal.
— Morreu dormindo — disse dona Almerinda, mulher de Camargo. — Hoje cedo queria dar uma limpeza no seu quarto. Mas ele não abriu a porta. Tive um pressentimento ruim, aí chamei o Camargo, que arrombou a porta. — Entre soluços, ela concluiu:
— Quando entramos, ele já estava morto.
O médico foi chamado. O diagnóstico foi imediato:
— Morreu de inanição. Jamais pensei que ele fosse seguir assim, ao extremo, a minha recomendação de moderar na alimentação.
— Ele era Teimoso em tudo o que fazia. — disse o gerente, como se fosse um epitáfio.
ANTONO GOBBO
Belo Horizonte, 12 de janeiro de 2022
Conto # 646 as SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS