Pequenas histórias 66
Não estava preocupado
Não estava preocupado com o horário. Precisava antes comprar um sapato senão não conseguiria trabalhar direito.
- Mas você vai perder a hora. – disse Silvio de repente.
Assustou-se não tinha visto o amigo.
- Ué! Como você veio parar aqui?
- Me mandaram.
- Te mandaram?
- Sim.
- E quem foi?
- Bom, só posso dizer que é alguém que se preocupa com você.
- Ninguém se preocupa comigo. Cada um se preocupa consigo mesmo.
- Aí que se engana amigo. Tem sempre alguém se preocupando com alguém.
- Está bem, acredito. – respondeu com ironia.
Nisso parou em frente a uma grande vitrine. Os sapatos numa ilusão de espelhos ou, sei lá o que fosse, davam a impressão de estar indo e vindo, de uma ponta a outra da vitrine. Pareciam que andavam vazios de pés.
- Isso tudo é enganação. – disse um rapaz ao lado dele apreciando a vitrine.
- O que?
- É. Essa vitrine. Pura enganação.
- Mas que é criativa ela é.
- Você vai entrar nessa loja? – perguntou num tom de repulsa.
- Vou. Por quê?
- Se eu fosse você não entraria.
- Ainda bem que não sou você.
- Essa loja é loja de gay?
- Como? Não entendi?
- É. Os vendedores são gays.
- E o que tem isso.
- Deviam morrer todos que fossem gays.
- Assim como os que fossem negros, nordestinos, pobres, judeus...
- Isso mesmo, morte a toda escória da humanidade.
- Que absurdo. – disse mais para si mesmo.
Entrou na loja sem dar pelota para o rapaz que olhou furioso para ele.
- Olá, Denílson. Tudo bem?
Aproximou-se dele um rapaz moreno, da mesma altura, sorridente, vestindo camisa branca e calça azul marinho.
- Tudo bem, Leo. Você não tem aparecido, por quê?
- É eu sei. Trabalho, trabalhado demais.
- Trabalho é bom, mas o laser é melhor.
- Quem é aquele cara lá fora que está olhando para nós?
- É um doido preconceituoso que quer matar a escória da humanidade.
- Conheço esse tipo de gente. Se sentem o dono da razão.
- É uma pena. Rapaz novo, bonito e perdido em suas razões fúteis de cidadão frustrado.
- Mas o que traz você aqui?
- Bom, vou querer um sapato. Você sabe, se eu não comprar um sapato não conseguirei trabalhar direito.
- Que número?
- O número de sempre e o modelo de sempre.
- Vai experimentar?
- Não. Vou levar e depois se não servir devolvo amanhã.
- Está bem. Vou buscar e já volto.
Enquanto esperava, Leo deu uma volta pela loja. Não estava movimentada. Os poucos fregueses que perambulavam pelas estantes eram jovens atrás das marcas e não da qualidade dos sapatos. A maioria dizia-se avançados, usando roupas manchadas, calças esgarçadas, camisas listradas, peito aberto mostrando correntes de todos os tipos, cabelos espetados, cortado rente, topetes dos mais diversos, pintados, enfim, era um pessoal que Leo conhecia por freqüentar muito as noites, mas que não aprovava como viviam.
- Pronto, aqui está, Leo.
- Obrigado.
- Até mais.
- Vê se aparece.
Leo saiu da loja. Lançou um olhar rápido para os lados. Não viu o rapaz preconceituoso que queria limpar a humanidade da escória. Riu. Olhou o relógio. Estava um pouco atrasado. Agora tinha que apressar o passo. Talvez cortar caminho. Ou pegar um ônibus. A única coisa que o atrapalhava era o sapato dentro da sacola com propaganda da loja. Droga! Virou o quarteirão à esquerda. Foi então que ouviu o pio da águia. Virou-se e viu a águia grande branca voando em sua direção. Não se mexeu. Quieto sentiu as garras da águia em seu ombro e viu a avenida ficar cada vez mais longe até que não viu mais a rua, a cidade...
E ninguém também não se preocupou mais com ele e ele, nunca mais se preocupou com os outros.
pastorelli