Cinco loucos ou um
1º Louco
Prazer, eu sou o homem louco deste conto. E tudo começa com uma noite comum de inverno. Uma daquelas em que o frio nos amolece e faz os sonhos florescerem. Que traz bons devaneios. Sigamos. Já era tarde da noite, talvez uma ou duas horas, quando enfim pousei a cabeça no travesseiro. Não demorou nada e eu dormi. E, dormindo, logo um sonho surgiu. Um belo sonho. Um maravilhoso sonho. E blá, blá, blá...Quanta besteira. Acha mesmo que um louco tem bons sonhos? Ingênuo. Você pode pensar que sim, pense o quanto quiser, mas eu sei a verdade. Eu não os tenho. Tentei apenas te distrair um pouco e acabei me empolgando. Mas, esqueça tudo isso a partir de agora. Saiba, portanto, que tudo começa numa noite de verão, quando, na verdade, eu tenho um terrível pesadelo. Um pesadelo que se inicia com um gato preso a uma coleira bastante apertada. E esta coleira vai se apertando cada vez mais. E a medida que acontece, o gato começa a se despedir do mundo. É terrível. Mas piora. Porque antes do seu adeus definitivo eu me torno o gato. E passo a sentir o que ele sente. Medo. Dor. Medo. Fome. Mais medo. Mais dor. Mais fome. E, por fim, eu morro. Mas acordo para a vida real. Claro, assustado. Suado. Aflito. Mas acordo. E é reconfortante. Pelo menos um pouco. Então, abraço a mulher que fica ao meu lado na cama e penso que ela é real. Penso, também, que seus afagos são importantes para eu me sentir melhor. E que só depois deles eu consigo voltar a dormir. Eu só penso.
2º Louco
Prazer, eu sou a mulher louca deste conto. E tenho que começar dizendo que há não muito tempo perdi o meu caso. Uma perda difícil. Porque não sou daquelas que se envolvem pouco. Mas sejamos breves. Ele veio me procurar no meu escritório. Havia recebido um cartão de visita de não se sabe quem. Ele era alto, magro, bonito, esguio, bonito...E com um problema. Tributos. Há três anos havia iniciado sua carreira de empresário e agora o Estado lhe cobrava. Claro. Veio até mim e expôs a situação. Bem, foi uma conversa longa e demorada. E, adivinha, nos tornamos amigos. Mas eu não me esqueci do caso, óbvio. Quando digo amigo, tento apenas anexar ao texto mais informações. Como, por exemplo, o fato de sua ex-mulher se chamar Sarah, sua avó ter morrido aos oitenta e sete anos e seu melhor amigo de infância ter se revelado gay há pouco tempo. Enfim, coisas pessoais. Mas, voltando ao principal, saiba que ganhamos o caso. Não foi um daqueles casos complexos, que de tão complexos é preciso uma legião de advogados para pensarem juntos. Mas, teve lá suas complicações. Que foram vencidas, claro, com a boa e velha dialética. Entretanto, como a vida não é um mar de rosas, meu cliente morreu. E foi uma perda terrível, para dizer o mínimo. Aquele homem era bom no melhor sentido de bom. Era engraçado, inteligente e amigo. Aliás, amigo não, porque com ele eu vivi um clichê. Quando ele se foi, então, tudo ruiu. E a partir desse dia meu fantasma ganhou vida. Sim. E é um fantasma estranho, que aparece apenas às noites. Ele sempre dorme ao meu lado e, de repente, a tantas da madrugada, ele acorda assustado, aflito, suando frio e diz ter vivido um pesadelo terrível com um gato. Por fim ele me abraça e eu o afago até o ver dormir outra vez. Eu sei que ele gosta, e é por isso que eu faço.
3º Louco
Prazer, eu sou o psiquiatra louco deste conto. E, apesar de o ser, sou o mais famoso da área. Todos me conhecem. E quando precisam, é a mim que procuram. Talvez, você já tenha ouvido falar de mim. Ou, talvez, já tenha me visto num desses outdoors espalhados pela cidade, pelo país, pelo mundo. Se não, aqui estão meus cumprimentos mais uma vez. Agora, entretanto, deixando os apertos de mão, gostaria de falar sobre dois pacientes em específico. Claro, não divulgarei seus nomes. E nem qualquer informação que macule a ética do sigilo médico. Saiba, apenas para começar, que esses pacientes sofrem do que eu chamo "Não sei que coisa é essa. Talvez, eu seja louco.". Parece palhaçada, não? Sei que parece, mas não é. Não estou escrevendo uma comédia. Nem sei como se faz. Sou apenas um psiquiatra renomado que por pura ironia do destino (ou da força maior) agora sofre da maldita loucura. Loucura esta que começou tão ingênua quanto uma gota d'água. Começou com o primeiro paciente: o jovem dos pesadelos recorrentes. Vamos a ele. Este jovem veio até mim e na primeira sessão me disse que não conseguia parar de sonhar com a mesma cena. Ele estava aflito e inquieto. Então, descreveu seu pesadelo a mim e, confesso, era tão complexo quanto a fé. Mas, claro, seguimos em frente. E ele acrescentou mais uma informação. Depois que ele acordava do pesadelo, sempre ao seu lado estava uma mulher. Esta mulher era carinhosa e todas as noites o acalmava com suas delicadas mãos. E isso foi tudo o que ele disse a mim. Mas foi informação o suficiente para marcarmos outra sessão. Afinal, é isso o que eu faço. Mas continuemos. Para o dia seguinte já estava marcado o segundo paciente. E seria o nosso primeiro encontro. Era uma mulher. Quando ela entrou na minha sala, parecia calma e nem um tanto nervosa. Sentou-se. Conte-me o que acontece, senhorita. E então ela me disse sobre um homem estranho, cujo rosto ela nunca vira antes mas que lhe aparecia todas as noites, durante a madrugada. Contou-me tudo. Cada ato. Primeiro, ela sentia a cama mexer. Logo em seguida, ouvia o chiado do colchão e um solavanco repentino. E, por fim, sentava-se na cama, e ali já estava ele, ao seu lado. Quando ela terminou de narrar, simples, eu já estava louco. Até o primeiro paciente não havia nada de mais. Era um caso comum, com o qual eu sabia lidar. Entretanto, quando a mulher me apareceu, bem, os dois casos se tornaram um e tudo ficou claro e diagnosticado. A primeira coisa que fiz, confesso, foi negar. Negar aquilo tudo. Mas, no fim, para me atestar do fato, pesquisei os pacientes, fui o mais distante. E, claro, sem sucesso. Porque não havia registro algum. Não havia o primeiro paciente e tampouco o segundo. Por isso, não sei que coisa é essa. Talvez eu seja louco.
4º Louco
Prazer, eu sou a esposa louca deste conto. E tenho um pedido: apesar de tudo que irá ler aqui, não me julgue tão infantil. Por favor. Tudo começa com um parque colorido no centro da cidade. Era tarde, um bom horário, e o parque estava cheio. Eu estava sentada numa mesa pré montada debaixo de uma árvore e observava o fluxo de crianças que iam e vinham. Eu sonhava com um filho há muito tempo. Mas eu sequer tinha um namorado. De repente, um grupo de três mulheres se juntou a mim na mesa. Todas elas carregavam uma bolsa muito bonita. E pela aparência das três beldades, cheias de jóias, boas roupas, julguei logo serem mulheres de sorte. E quando digo sorte, refiro-me, claro, a maridos ricos. Vocês vêm sempre aqui no parque? E por eu não ter bolsa as mulheres me evitaram. Mas eu insisti. Então, uma delas me falou que as três estavam de passagem pela cidade. Ah, legal, eu também estou. Pois não parece, a mais metida disse. Aparências enganam. Conhecem (inventei um nome e sobrenome comprido e difícil)? Pois bem, ele é meu marido. Será o conferencista gold da 20ª Conferência Mundial de Psiquiatria, que acontecerá na semana que vem, aqui na cidade. Elas fizeram expressões de desinteressadas e ainda disseram que um psiquiatra era só um médico de loucos. Não, não é. Um psiquiatra, na verdade...Um psiquiatra...bem, meu marido é das altas rodas. Já cuidou de famosos e seu rosto está estampado em outdoors por todo o mundo. Se vocês estão em viagem, é bem provável que o encontre por ai. Têm certeza que não o conhecem? Elas nem responderam. Simplesmente se levantaram e saíram. E eu continuei ali, sentada, sozinha. Foi quando, de repente, um homem se aproximou e pediu uma informação. A senhorita sabe onde fica o Hotel dos Reis? Siga a rua paralela ao parque até o fim. Depois vire à direita. Muito obrigado. O rosto do homem era idêntico ao que eu imaginara nos outdoors. Então, perguntei seu nome. E, claro, era ele.
5º Louco
Prazer, eu sou o gato louco deste conto. E tudo começa, tudo começa mesmo, com uma perseguição. Quando um maldito cão de um dono também maldito decidiu que devia me matar. Seu primeiro sinal foi um rosnado amedrontador. E eu o entendi. Comecei a correr logo e, então, ele acelerou também. Ficamos distantes um do outro poucos centímetros durante um bom pedaço de tempo. Eu sentia seu bafo quente atingindo meu rabo. Eu sentia até seus dentes me dilacerando. E isso me incentivava a correr ainda mais. Eu passava por aqui, por ali, subia, descia, rodava, fazia curvas. E ele sempre atrás de mim. Passamos o primeiro quarteirão e depois o segundo. Então o terceiro e depois o quarto. E, de repente, o cão me encurralou. E eu caí dentro de um bueiro. Como sou doméstico, tenho coleira. E por tê-la, fiquei preso por ela numa ponta de ferro antes de tocar o chão. Fiquei pendurado. E eu não consigo sair. Já faz três horas que estou aqui dentro. Estou cansado. Nos primeiro minutos eu até acreditava que mais cedo ou mais tarde eu conseguiria me libertar. Ou alguém me encontraria. Entretanto, esses primeiros minutos já se passaram há muito tempo. E, eu sei, será inevitável. É triste morrer assim. Eu estou com frio. Estou com fome. Estou com medo. A coleira aperta o meu pescoço e com o passar do tempo o aperta cada vez mais. Meu fôlego se finda. Eu tenho delírios. Eu vejo coisas que não existem. Ainda há pouco eu vi uma mulher no parque. Ela conversava com outras mulheres. Mas, eu não sei o que isso significa. Não sei se elas são reais. Eu tenho medo. Eu tenho fome. A coleira me aperta. Por que você não me ajuda?