O Amor Anula As Perdas
O Amor Anula As Perdas
Abandonaram o barco encalhado na praia. Com o motor em mau estado, a embarcação servira anos no alto mar para abastecer a Pescaria da Catumbela e alimentara os seis homens que, agora, fugiam da guerra e a abandonavam, arruinada, porque, de repente, viver foi a sua prioridade. Muitos meses se passaram sem que nada acontecesse. Alguns adolescentes ainda subiram ao deck, outros afoitaram-se a descer as escadas escorregadias para sentir a escuridão húmida do porão do peixe, a casa dos beliches, a cozinha acanhada, a zona das máquinas. A âncora apresentava restos de negro, muita ferrugem e toda a madeira ressequida estalava com a pressão do peso de quem andasse sobre as vigas a apodrecer o descaso e as ausências. Supersticiosa, a população acreditava que havia espíritos gemendo e arrastando as lonas nos espaços livres do barco e tanto bastou para que ninguém se atrevesse a passar perto. Um dia viram o homem a sair com material de carpintaria e ajoujado com o peso de madeiras que carregava aos ombros ou arrastava pela areia. Deixaram de prestar-lhe atenção quando, teimosamente, o viram a fazer a recuperação do barco tábua a tábua, ferro a ferro. Com fama de maldito e feiticeiro, Donka viera de longe e falava uma língua raspada que nunca fez muito sentido. Dormia no barco e cozinhava lá. Nas noites de luar podia ser visto junto à amurada a olhar para o mar e era frequente aparecerem luzes à popa ou à ré nas noites calmas. Duraram muitos meses as obras de restauro e calafetagem do casco, as pinturas, o repor dos cabrestantes, o conserto dos mastros. Bastou abrir uma vala até ao mar e o barco pode, na primeira calema, navegar. Quando, a troco de nada o ajudaram, alguns mostraram vontade de seguir pra a faina na embarcação recuperada mas, temendo que fosse verdade tudo o que se dizia sobre o estrangeiro, ninguém aceitou seguir viagem com ele. E Donka, foi só. O barco diminuiu no horizonte até ser um ponto minúsculo que suscitava dúvida a quem assistiu. Muitas conjecturas se fizeram na ocasião mas o tempo calou a lenda e a história de Donka morreria nas memórias não fora o seu regresso abrupto. A fúria do mar despedaçou o barco e jogou na praia os destroços. Redes, madeira, ferros e um homem milagrosamente vivo que emergiu do caos chorando numa língua que ninguém entendia. Ele aproximava-se e o povo fugia. Ele pedia ajuda e a gente corria. Mas ela não. Mal o viu, correu para ele libertando-se da quinda, jogando os panos na areia, abrindo os braços na extensão do amor e da alegria. Ele chorava, ela ria. Ele arranhava as palavras que só ela entendia. O abraço que deram lhes fez doce o dia. Ela era tudo o que tinha, mais ninguém falta fazia. Nem mar nem barco mas Donka, feliz, já ria.