Meu Anjo da Guarda

Meu filho, cada pessoa no mundo tem um Anjo da Guarda. E este Anjo não dorme e vive só para proteger aquele que é seu amigo. Sempre que você precisar, ali estará ele. E nem é preciso chamar. Porque ele sempre andará ao seu lado.

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Já era meia noite e estava eu e o meu Anjo da Guarda seguindo por um beco escuro e silencioso. Era um daqueles becos que quase sempre vemos nos filmes de ação de Hollywood, nas cenas em que o mocinho foge do assassino. Era tão idêntico que havia até as poças de água que refletiam a luz da lua e funcionavam como espelhos. Na ocasião me pareceu até clichê, mas numa dessas poças eu me vi e me perguntei o que é que eu estava fazendo ali. Não consegui me enxergar como um mocinho, claro, mas também não me vi como um assassino. Na verdade, creio que tudo fora muito fantasioso e minha pergunta não foi nem um tanto séria. Devaneio nonsense.

Meus passos seguiam firmes e meu Anjo da Guarda voava, também firme. Eu não o via, mas ele estava ali. Dentro de nossa amizade poucas foram as vezes em que conversamos. Ele só falava alguma coisa quando eu abria a boca primeiro. E naquele beco seguiu como de costume. Eu disse a ele que tudo ocorreria conforme o combinado e que não precisaria intervir em nenhum momento. Disse isso a ele antes de entrarmos pelo beco. E depois que terminei ele falou que os homens nunca sabem a hora em que que precisam ou não de ajuda. Sua voz fora descontraída mas no fundo eu sabia que era verdade. Principalmente porque nós, criminosos, acreditamos piamente em nossa valentia, destreza, força, poder, enfim, todas essas falsas garantias. E por sermos tão convictos, esquecemos do nosso Anjo da Guarda e acabamos por resolver tudo sozinho. Isso quando precisamos resolver alguma coisa. Porque, por mais estranho que pareça, quase nunca temos que enfrentar estradas bifurcadas, escolhas imediatas. Pelo menos não aqueles que andam abaixo ou acima do radar, ou simplesmente são espertos. Mas, claro, há exceções.

E um exemplo foi a vez em que um metido a esperto tentou me passar a perna, expressão sinônima de enganar. Na ocasião o babaca disse que seu chefe era quem me passaria o dinheiro pela droga e seria no dia seguinte ao da entrega. E era para eu considerar a metade daquele pacote como amostra. Bem, tudo pareceu brincadeira. O "chefe", como ele disse, pelo menos na primeira transação, sempre se encontra com o distribuidor. É como uma regra diplomática entre a máfia da droga. E, segundo, não existe o termo "venda a prazo" entre desconhecidos, muito menos na primeira compra. Por isso, claro, neguei a venda. E nesse momento o idiota puxou uma faca. Uma faca! Quanta bobagem!

Dias depois o meu Anjo da Guarda me contou que mesmo ele sendo tão rápido, naquele dia eu agi ainda mais rápido que ele e avancei na mão do covarde. Ou seja, neguei sua ajuda.

Entretanto, o fato é que eu acreditava que agir pelas falsas garantias não significava abdicação eterna da ajuda do Anjo. Para mim, as falsas garantias eram a defesa nível um e o Anjo era a nível dois. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Além disso, essas garantias são mais rápidas que a luz. Quando a oportunidade surge, elas acionam movimentos que aparecem tão rápidos quanto a nossa percepção deles. Esses movimentos formam o instinto.

Mas, entre mim e o Anjo ficou tudo resolvido. E, se quer saber, também é fato que eu sempre acreditei que um dia ou outro eu precisaria dele. Porque nesse dia minhas garantias falhariam, e ele estaria ali para ajudar seu amigo. Eu acreditava nisso, infelizmente.

Quando chegamos no fim do beco demos de cara com um homem incrivelmente alto e forte. Ele estava todo de preto e tinha um olhar intimidador. Mas não me botou medo. O homem fez um gesto com a mão e me conduziu até o outro lado da rua, onde havia um carro estacionado.

— Então você é o distribuidor? — Disse um homem saindo do carro.

— Eu trouxe os dois quilos. Sejamos rápidos, apesar de morta essa rua não é confiável.

— Sim, claro, vamos ser rápidos. Mas, me diga, você é quem produz ou trabalha pra alguém?

— Sou eu.

— Ah, isso é bom. Me chamo Carlos — estendeu a mão. Eu hesitei, mas por fim a estendi também. Mas eu não disse meu nome.

Ele prosseguiu.

— Aqui está a grana. Te encontro da mesma forma ou aqui termina a burocracia?

— Creio que falta pouco.

O homem riu.

— Você é bom negociante — Pausa. — Eu gosto de bons negociantes.

Peguei o pacote com o dinheiro e entreguei a droga. O homem sacudiu a cabeça e curvou um sorriso curto. Por fim disse:

— Talvez sejamos amigos.

Eu não disse nada, apenas lhe dei as costas e caminhei dois passos. Foi então que ouvi algo.

— Hei, espera ai.

De repente, meu coração acelerou. E eu senti algo bem ruim percorrer meu corpo. Uma sensação terrível. Quando me virei, ali estava ele, bem na minha frente, de novo, o idiota da faca. Mas, agora, era um homem com uma pistola mirada.

— Se lembra de mim?

Ele também estava no carro. Falha minha.

— Hein, se lembra de mim?

E, subitamente, minhas falsas garantias falharam.

— Há algum problema? — Disse eu.

— Creio que sim. Não podemos ser amigos. Entenda isso como uma simples eliminação. Ou não tão simples assim, você que decide — Disse o homem que me estendera a mão.

E tudo que veio depois aconteceu muito rápido. O idiota descarregou sua arma e enquanto o fazia o grandalhão que me conduzira empunhou a sua e também a descarregou. Foram no mínimo trinta tiros na minha direção. Entretanto, antes que o primeiro disparo atingisse meu corpo, o meu Anjo da Guarda saltou na minha frente. Fora rápido como um raio. Infelizmente, de nada me valeu. Os projéteis atravessaram seu corpo imaterial como os aviões atravessam as nuvens. Nem sequer ofereceu resistência. E os projéteis atingiram meu corpo em todo lugar possível. De mim só restou furos e sangue.

Por fim, posso dizer que, definitivamente, não acredito mais em Anjos da Guarda. Eu morri porque eles são falsos. E vivi durante todo aquele tempo porque as minhas falsas garantias, sim, eram reais. Anjos da Guarda são histórias para homens inseguros.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 16/01/2015
Reeditado em 26/01/2015
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