599-RICARDÃO ENFRENTA O DRAGÃO-

Desde a infância, Ricardo apresentou peculiaridades no desenvolvimento. Crescia a olhos vistos, o que poderia ser explicado pela altura do pai. Entretanto, não parou de crescer até atingir os vinte e cinco anos, e então já se tornara um gigante, com dois metros e quinze centímetros de altura. Pesava então 130 quilos, o que não era demais, considerada sua altura. E justificava plenamente o apelido — Ricardão — que trazia desde quando freqüentava os primeiros anos da escola pública.

O crescimento físico não foi acompanhado pelo desenvolvimento da inteligência. Pelo contrário, sempre foi um menino meio lerdo no aprendizado, tinha um comportamento hoje conhecido como esquizofrenia, era tímido e ao mesmo tempo, corajoso para enfrentar situações perigosas, conforme sua imaginação registrasse.

Viva em uma casa situada no final da rua, quando esta se transformava em estrada de carro de bois. O pai, Rosalvo, era alfaiate, trabalhava no centro da cidade e passava o dia todo na alfaiataria. A mãe cuidava da casa e na parte da manhã, fazia o almoço e preparava a marmita do almoço que Ricardão levava para o pai.

Devido à curta inteligência, aliada ao tamanho descomunal e ao seu isolamento, os colegas faziam com ele brincadeiras de mau gosto, chacotas e gritavam seu nome (de longe, é claro) como se fosse um insulto:

— Ricardão Peidão!

Ou

— Ricardão Pastelão!

Este último o irritava extremamente, e ele, sem saber o verdadeiro significado, saia correndo atrás dos colegas, que, menores e mais ágeis, nunca eram alcançados.

Rosalvo, o pai, gostava de ler. À noite, quando não levava paletós ou calças para serem terminados, dedicava-se à leitura. Tinha preferência pelos livros de aventuras e de viagens. Era como se, quando estava lendo, deixasse aquela casa simples e embarcasse com os heróis e aventureiros pelos muitos mundos que estavam dentro dos livros.

Quando o filho estava por perto, isto é, quase todas as noites, lia em voz alta para que ele escutasse. Desta forma, Ricardo ouviu as histórias dos cruzados, de Dom Quixote, dos lendários heróis da Távola Redonda e outras epopéias da literatura.

A falta de inteligência de Ricardo era contrabalançada por uma coragem que raiava ao absurdo. Defronte a casa onde morava passava a estrada boiadeira. Era por ela que transitavam os carros de bois e também, as boiadas e os magotes de bois e vacas com destino ao matadouro. Uma das brincadeiras preferidas de Ricardão era ficar à espreita (podia ver ao longe, pela poeira da estrada) quando vinham os cavaleiros conduzindo os bois. De repente, saltava do esconderijo para o meio da estrada, assustando cavaleiro e bovinos, que subiam pelos barrancos das estradas, dispersando os animais e causando dificuldade aos boiadeiros.

Chicotes estalavam, gritos escoavam:

— Êêêêê, boi!

— Sai da frente menino, que o bicho é brabo.

Uma vez, Ricardo foi atingido pela ponta de um longo chicote, que mais parecia um laço. Chegou a casa com a camisa rasgada e o ombro sangrando onde o chicote havia mordido.

A mãe via no comportamento do filho um destrambelho, coisa sem importância. O pai preocupava-se. A tal ponto de proibir o filho de sair de casa desacompanhado. Como não trabalhava nem estudava (mal e parcamente terminou os quatro anos do primário), deveria permanecer o dia todo em casa.

Transformou-se num fujão. Ou por índole ou mais devido ao regulamento do pai, Ricardo fugia e ia para os pastos ou para a mata que começava próximo a casa e estendia-se a perder de vista até onde a vista alcançava.

Nas suas fugas, aventurava-se por campos de batalha, onde enfrentava beduínos e infiéis, índios e selvagens que povoavam sua mente. Na mata, encontrava-se com os mais poderosos animais — leões, rinocerontes, tigres ou elefantes — que derrotava todos. Emitia gritos de guerra a fim de afugentar os inimigos e urrava como o leão, pondo em fuga animais contra os quais nem cogitava em lutar.

Cada saída era uma nova aventura. Voltava sempre triunfante, pois vencia tudo e todos.

A mãe não conseguia impedir as fugas do filho. Falava com o marido, à noite, que repreendia o filho e abria o romance para a leitura de novas aventuras, as quais Ricardo escutava com atenção — pois era daquelas histórias que saiam os monstros e bandidos a serem enfrentados no dia seguinte.

O silêncio era seu esconderijo e o refúgio para as elucubrações de nova aventuras. Nem o pai nem a mãe, seus únicos contatos com o mundo exterior, sabiam de suas aventuras, peripécias, perigos e vitórias vividas nas tardes longe de casa.

Realidade, fantasia, imaginação e alucinação estão separadas, em nossas mentes, por um fio tênue que pode ser rompido por fatos ou circunstâncias que jamais imaginamos. E na cabeça de Ricardo, a confusão já estava sendo instalada.

Do outro lado da cidade ficava a estação da estrada de ferro, pela qual passavam dois comboios diários. Era a novidade sensacional que impressionava a todos os moradores da pequena cidade. Um domingo, estando Ricardo já com quase trinta anos, o pai o levou a ver pela primeira vez o trem de ferro.

Ainda de longe, ao ver a locomotiva arrastando os vagões de passageiros, gritou:

— Papai, é um dragão! Olha lá! Cospe fumaça pela cabeça e pelas patas e tem o corpo cheio de buracos. E aquela gente olhando pelos buracos?

— Fica quieto, Ricardo. E fica longe dos trilhos, que aquela maquina não pára fora da estação.

Ricardo ficou impressionado — mas jamais com medo — daquela maquina, que ficou sendo, na sua cabeça, um dragão a ser combatido e vencido.

Como o pai havia avisado, ficou longe dos trilhos e mesmo quando o trem encostou-se à plataforma de embarque, ele manteve-se à distância. Olhando. Estudando o dragão.

A idéia fixou-se em sua mente: o dragão de ferro era um bicho contra o qual tinha de lutar e que tinha de vencer. Na sua próxima escapada de casa, foi para as bandas da estrada do dragão. Ficava longe, do outro lado da cidade, passando por campos, por entre barrancos escavados ou por sobre aterros de grande altura. Viu, de longe, o comboio da tarde.

Amanhã, tenho de sair de casa mais cedo, pra derrotar o dragão de ferro, pensou.

E foi. Escolheu o local para a luta: era onde o dragão se arrastava por sobre seu caminho de ferro, numa curva por sobre um grande aterro. No fundo da grota formada pelo aterro passava o rio Manso.

Vou tirar este bicho do caminho e vou jogar lá embaixo. Ninguém vai achar o dragão morto, pois cairá nas águas do rio. O rio vai levar ele pra bem longe daqui.

Assim pensava em destruir o terrível dragão comedor de gente que ia ao seu bucho, olhando pelos buracos como se fossem janelas.

Ao ouvir o rugido do dragão (era como ouvia o apito da locomotiva), colocou-se ao lado dos trilhos. E quando a maquina desembocou da cava, entrando na curva, saltou para o meio dos trilhos, com uma vara na mão, simulacro de uma espada ou lança.

Não foi visto sequer pelo maquinista, tão rápido fora sua ação. Ao saltar, a máquina vinha em velocidade, e o simples esbarrão no limpa-trilhos foi o suficiente para lançar Ricardo à grande distância do leito, jogando-o barranco abaixo, justamente onde o herói pretendia lançar o dragão.

O foguista, ajudante-do-maquinista, foi quem viu o corpo despencar na funda grota, mas nada havia a fazer. Ao chegar o comboio ao destino, deram ciência ao chefe-da-estação do que haviam visto.

— Provavelmente, alguém que queria se suicidar. — Foi a explicação que encontraram.

O corpo foi localizado após difícil busca. Identificado, foram os pais informados da morte de Ricardo. O delegado não titubeou em registrar o caso como suicídio.

Os pais, entretanto, não aceitaram nunca o veredicto policial.

— Mas nosso filho era tão feliz... porque foi se suicidar?

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 26 de março de 2010

Conto # 599 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/12/2014
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