QUEDA E RESGATE

Noite tenebrosa. No céu cor de chumbo não brilha estrela alguma. No topo do planalto, ladeado por uma cortina de rochas e iluminado por archotes, destaca-se o imponente prédio do Supremo Tribunal de Angerona, senhora do silêncio, do medo e da ordem.

Reina um silêncio incômodo ao redor desse local sagrado. Diante da Juíza Celestial, um ser humano em pé, algemado e cabisbaixo ouve as acusações do carrancudo Promotor.

______Antes, deverias responder corretamente quarenta e duas perguntas, que foram sistematicamente reduzidas a dez... duas e finalmente a uma apenas e nem a essa única consegues responder com a verdade! Quando irás entender?

O réu não ousa sequer erguer a cabeça, muito menos responder. Leviatã, um dos promotores, o de aparência mais feroz, que já proferira acusações terríveis contra o réu, insiste em que a Juíza Divina desista desse ser abjeto, deixe-o cuidar dele, saberá lhe ensinar, promete.

O barulho suave e inconfundível do ruflar das asas de um Protetore obriga a assistência voltar-se em sua direção. Luminoso igual Vésper, Asa Branca, o mais belo de todos os Principados se levanta diante da Assembléia Planetária e ergue o braço direito.

_____Protesto Excelência! O homem é inocente. É incapaz de engendrar tanta monstruosidade contra seus semelhantes. Leviatã está faltando com a verdade!

Um murmurio permeia o ambiente e cresce de tal maneira que a Juiza bate o martelo exigindo silêncio, sob pena de cancelar a audiência. Indignado, o Promotor interpela o jovem Principado.

_____Olha para tuas vestes, Asa Branca, compara-as as cores da Bandeira que representa a nação desse... desse monstro! Vês o antes dessa terra a quem chamavam Terra da Santa Cruz? Negas o que vês? No que ele a transformou? Essa criatura tem algo que não nos foi dado: o livre arbítrio. Pode escolher entre o bem e o mal. E o que escolhe? Mata seus irmãos por puro prazer. Desrespeita as leis que ele próprio criou. Zomba das Leis Divinas. Está destruindo a natureza, a terra, tudo à sua volta! Por onde esse monstro passa, deixa um rastro de dor, miséria e devastação. É uma fera sem entranhas! Sabe qual a escolha correta e mesmo assim ele sente prazer em fazer o mal... sempre... não pode e nem deve ser poupado! Exijo a pena máxima: extinção imediata!

______Não! Ele foi criado à nossa imagem e semelhança. Destruindo-o, uma parcela de nós mesmos irá com ele. E, principalmente, estaremos negando a Onisciência de DEUS!

A ira de Leviatã atinge o ponto máximo. Dirige-se à Juíza.

_____A afronta aos desígnios pré-estabelecidos não deve ficar impune! Então, que Asa Branca seja punido em lugar do homem. Que seja exilado na terra ao lado dele, sem qualquer poder divino... veremos se ainda defenderá esse monstro! Irá sózinho, sem nenhum amigo para o acompanhar!

Após um longo e angustiante silêncio, a Divina Juíza interpela o jovem Principado:

_____Concedo-lhe um acompanhante. Dele só terá conhecimento quando estiver preste a retornar. Será seu salvo conduto. Diante dele, deverá fazer sua escolha. Entretanto, a sentença de Leviatã me parece justa. Aceita-a?

_____Sim, Meritíssima, aceito. Quando regressar, trarei comigo a prova de que o homem é inocente. Como inocentes são todos os que têm as asas manchadas de sangue por não terem direito ao livre arbítrio.

Ouve-se o som retumbante do martelo em sinal de que a audiência chegara ao fim. Asa Branca é levado até a borda do abismo. Dois Querubins Flamejantes proferem a sentença: "Passará pelo Rio do Esquecimento, mas não beberá, uma gota sequer, de suas águas. Sua asas serão amputadas, e seus poderes angelicais confiscados. Será relegado à condição do ser co-autor da vida na terra e, por isso mesmo, mais desvalorizado. Sentirá 100% todas as necessidades e deve procurar satisfazê-las, fazendo suas próprias escolhas, como ele, o humano a quem defende o faz. Está feito!"

Sua asas, o último vestigio angelical, são arrancadas com extrema brutalidade, o sangue jorra em borbotões, fazendo-o urrar de dor. Essa é sua primeira experiência humana. Atordoado pelo martírio, leva uma violenta pancada entre as espáduas e perde o equilíbrio, precipitando-se no vazio à sua frente. Cai vertiginosamente numa eternidade escura e fria, até que uma voz infantil o obriga a abrir os olhos. Sente a dor nas costas, persistente, incomodativa. Sorrindo para ele está uma menininha de cara suja e sorriso banguela.

_____Acorda preguiçosa... alevanta Asa Branca, tu num vai pro trabai hoje não, é? Daqui pouquim chega o carro do lixo. Tô morreno di fome... traivez, quem sabe, hoje trague arguma cumida!

Reponde instintivamente.

_____Restos, você quer dizer... comida que porco chia, mas não come!

_____E nói lá é poico, mulé? Nói tem mais é que cumê, sinão morre é de fome! Vamo, se alevante...

_____Mulher? Eu sou uma mulher?!

A risada infantil assemelha-se ao tilintar de guizos natalinos.

_____É craro, né? Se fosse home, tinha pingulim... mai tu num tem... pelo meno eu nunca vi...

Maltrapilha, sofrida, ali está Asa Branca, agora uma mulher. Imediatamente percebe que essa é a repetição de uma cena diária: seres humanos disputando restos de comida com urubus! Sente engulhos, uma dor lancinante a obriga levar as mãos ao estômago. Ouve o barulho do carro chegando no lixão e vê a horda de seres famintos e sujos que avança sobre os restos despejados no solo, espantando os urubus, fazendo-os fugir numa revoada escura e fétida.

Ainda zonza e mesmo sentindo a pequena mão de sua companheira puxando-a, com insistência, Asa Branca se recusa a participar daquela cena degradante. Alguém a empurra fazendo-a perder o equilibrio e ser levada em roldão pela turba em alvoroço. Cai, é pisoteada. Ouve o grito da menina.

_____Alevanta Asa Branca, alevanta sinão tu morre! Ahhhhhh meu Deus... parem com isso... ela tá firida... parem... parem seus animais... alevanta amiga... morre não...

Um silêncio sepulcral absorve as vozes, o ruflar das asas negras dos urubus, o ranger dos freios do caminhão. Estendida no solo Asa Branca arqueja, mortalmente ferida. A multidão faminta e assustada forma um círculo ao seu redor. Tremendo e chorando, Acauã lhe segura segura as mãos, percebendo que a vida que até pouco iluminava o negrume dos seus olhos... está se apagando.

Num ímpeto, Acauã levanta-se. Sua aparência não é mais da frágil criança suja e desdentada. Ela agora é um Guerreiro Celestial. Ergue os braços e seis possantes asas cortam o ar fazendo um barulho ensurdecedor, como se um gigantesco helicóptero tentasse pousar sobre aquele amontoado de lixo, seres humanos e urubus. Em suas mãos, um belíssimo par de longas asas tremula. Já não são brancas, são verde-amarelas. Então Asa Branca compreende. Tudo fica claro em sua mente.

_____Você... reconheço esse rosto... você é o ser humano a quem defendi diante do Tribunal! Então é você o meu salvo conduto?! Agora entendo, não fui exilada, recebi uma chance de absorver a força deles... a coragem de sobreviver mesmo diante da tirania dos cruéis senhores da lei do mais forte... não me deixe ir, Acauã... ainda tenho muito o que fazer aqui... por favor, não devolva minhas asas! Peça à senhora que me conceda um pouco mais de tempo... eu conquistei o direito de escolher e escolho ficar aqui, ao seu lado... juntos lutaremos por eles... por nós!

O amigo alado faz um gesto suave concordando em deixá-la viver. Entrega-lhe não um par de asas, mas pedaços de tecido verde-amarelo, meio estragado pelo tempo e um tosco mastro de madeira no qual Asa Branca amarra as extremidades do tecido. Ainda fala com dificuldade, mas denotando uma força interior extraordinária.

_____Essa é a nossa bandeira... mesmo em farrapos, ela representa uma Nação e merece a devida reverência! Acordem, esse não é trabalho digno de cidadãos saudáveis, produtivos e que acima de tudo elegem governantes! O que nos impõem o descaso, a injustiça, o desrespeito à Contituição do País é condição humana distorcida... é uma afronta à cidadania... é desrespeito às Leis de DEUS e dos Homens. Cumprimos nosso dever para com a nação: votamos e queremos trabalhar honestamente! Temos direito ao trabalho digno e vamos exigir respeito às Leis. Existem leis que defendem os direitos dos animais e nos tratam como se... nem animais fossemos? Leis que defendem infratores e, para nós, nada? Sabem cantar? Se não sabem, eu lhes ensino...

Ouvem-se os acordes do Hino à Bandeira Nacional e uma estrofe enche o ar causando arrepios nos seres desnorteados que observam a cena sem entender... "Sobre a imensa Nação Brasileira, nos momentos de festa ou de dor, paira sempre Sagrada Bandeira, pavilhão da justiça e do Amor..."

Asa Branca se levanta com o auxilio do majestoso Serafim e marcha adiante da turba agitada, rumo ao Palácio do Governo Estadual, empunhando a "bandeira" que confeccionara com o que antes foram suas asas.

A multidão, frente ao imponente edifício, empunhando aquela "bandeira" em tiras, grita a plenos pulmões:

_____Trabalho, queremos trabalho! Exigimos respeito à Constituição!

O som de uma voz infantil chama sua atenção.

_____Acorda mamãe, temos muito trabalho a fazer. Esqueceu que hoje é o dia da primeira confraternização natalina do nosso Centro Comunitário? Se você que é a nossa presidente, não participar dos preparativos, começaremos mal! Venha, já fiz o seu café e arrumei suas roupas ali, sobre a cadeira. Quero que esteja mais bonita do que sempre é...

_____Acauã, você é minha filha e não está suja nem banguela... querida?

_____Nossa, o sono mexeu com a senhora hein? Claro que eu sou sua filha sim, mamãe! Agora, banguela eu fui só até meus dentes nascerem... olhe, estão todos aqui! E suja nunca fui, desde até onde me lembro, você jamais deixou que me faltasse qualquer coisa e ainda diz que eu sou a sua força para enfrentar a vida!

_____Porque você é o Meu Anjo da Guarda...

_____O pessoal da comunidade diz a mesma coisa sobre você! Sabe, é melhor ficarmos quietinhas senão alguém nos denuncia por falsidade ideológica! Anjos... como, se nem temos um par de asas?!

_____É verdade que não temos asas, mas temos dois braços sadios para nadar... e é só o que precisamos saber: nadar! Já lhe contei a história do remador e do cientista?

_____Ainda não, mamãe...

_____Qualquer dia desses lhe conto. Podemos ir agora, senão nossos amigos irão pensar que...

_____Perdemos as asas!

Caem na risada. Após o café, Asa Branca se arruma, sob o olhar atento da filha. De mãos dadas, ambas percorrem a estradinha de terra solta respirando satisfeitas o ar, agora limpo, do lugar onde antes havia um amontoado de lixo, dejetos, urubus e "Anjos" famintos.

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Adda nari Sussuarana
Enviado por Adda nari Sussuarana em 20/12/2014
Reeditado em 28/01/2020
Código do texto: T5075457
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