Dia normal

Estamos sentados numa cadeira dura, no hospital público. Ele parece mais abatido a cada minuto. Seus olhos estão fechados e eu sei que está adormecido. O médico não aparece, e já estamos aqui tem mais de meia hora. A atendente nos olha de minuto em minuto. Ele parece realmente mal. Ela liga para alguém lá. Ele vai morrer, eu a ouço sussurrar, depois me olha e sorri. O doutor está vindo. Cutuco ele. Não reage.

— Inacio. Acorda Inacio.

Nem sinal. Droga. Pego um copo de água e jogo em sua cara. Acorda com um rugido. Fala algumas palavras incompreensíveis e volta a fechar os olhos. Se ajeita na cadeira e volta a dormir.

— Cristo, Inacio. Maldição. Que diabos você anda usando? Eu saio uma semana de perto de você e você quase se mata.

O médico vem acompanhado de uma maca. Uma maca barulhenta. Inacio move a cabeça, parece que sua orelha se moveu também. Abre um olho e encara estático a maca. Do nada, pula da cadeira direto para ela. De quatro ali em cima, roda uma vez e outra, se ajeita e se enrola em torno de si. Volta a dormir. Estamos todos chocados com sua habilidade. Parecia um felino. Meu Deus, ouço a enfermeira falar e ao mesmo tempo fazer o sinal da cruz. Ele é conduzido para dentro, o médico pede para eu acompanhar. Andamos pelo corredor fedendo a azedo e desinfetante, cloro e não sei o que mais. Me manda esperar numa sala e eles o levam embora. Seu cabelo negro estava clareando? Diabos, tenho certeza que estou limpa há anos para ver uma coisa dessas acontecer na minha frente. Dá uma vontade louca de acender uma pedra, como fazíamos nos velhos tempos. Maldito bastardo.

Passaram-se quase meia hora antes do médico voltar. Ele vem abatido, coberto de pelos loiros. Um arranhão na bochecha. Um longo arranhão. Na verdade seu jaleco está coberto de sangue. Olho muito assustada para ele. O que aconteceu? Ele morreu? Teve alguma overdose hemorrágica? Minha nossa, tão novo?

— Não morreu. Você pode me acompanhar?

Quais opções eu tinha. Entrei em seu consultório. Ele andou até a mesa e tirou uma cartela de uma das gavetas. Abriu uma pasta e tirou um cantil, entornou uma golada. Tomou um comprimido e deu outro trago. Me passou a cartela. Nem quis saber o que era. Se o médico estava precisando, imagina eu? Comecei a me sentir mais calma. O whiskey era do bom. Sentei na cadeira e ele sentou na mesa.

— Seu amigo? Namorado? Parente?

— Amigo.

— Ele está sofrendo uma mutação.

— Como assim? Ele não está chapado de drogas?

— Até hoje nunca vi nenhum drogado fazer o que ele está fazendo. Só se for uma nova droga. Muito poderosa.

— Que diabos esse babaca anda aprontando?

— Não sabemos o que fazer para deter a mutação. Não sabemos se é contagioso. Não sabemos nada. Não estudamos para aprender sobre mutações reais e nem somos veterinários.

— Jesus. Se Deus existir, esse é um bom momento de aparecer.

— Com certeza.

— Posso vê-lo?

Nesse momento ouvimos um forte rugido e gritos. Muitos gritos.

— É ele. Falou o médico.

Saímos correndo para ver o que acontecia. Eu estava meio alta, ia meio que flutuando. O negócio do médico era forte. O teto parecia muito mais distante e as paredes se moviam. Eu estava legal. Entramos no quarto e eu vi uma coisa absurda. Um leão. PORRA, UM LEÃO estava deitado na maca que tinha desmontado com seu peso.

— Cristo. Inacio?! — Levantou a cabeça e me olhou. Era ele. Eu reconheceria seu olhar em qualquer lugar. — Inacio?

Rugiu. Quase morri de susto. Me olhou com seus olhos de cachorro morto e se virou de costas, como que me incentivando a coçar sua enorme barriga peluda. Estava dantesco. A juba mesclava pelos negros e pelos loiros. O rabo. Era enorme, com pelos pretos na ponta. Batia no chão, espanando o piso do hospital. Abriu a bocarra e passou a ronronar. Eu nem sabia que leões ronronavam. O médico estava na porta. Olhei para ele e não sabia o que fazer. Inacio moveu o corpo, como cão que pede carinho. Me aproximei devagar. Um passo torto de cada vez. Sentei ao seu lado. Ele lambeu minha mão. Cocei seu peito. Gostou e rugiu. O médico, ouvi ele desmaiando. Fraco.

Ficamos nos encarando. Que diabos eu faria? Virou-se, apoiou a cabeça enorme no meu colo, me deu uma lambida no pescoço, me deixou toda melada, e dormiu. Ele simplesmente dormiu. Quando o médico acordou de sua frescura, me trouxe uma corda que eu passei no pescoço de Inacio, só para representar né? Acordei ele e fomos andando pelo hospital. As pessoas gritando, causando pânico. Absurdas.

Entrei com um amigo no hospital, estou saindo com um leão. Agora vou levá-lo ao veterinário… para ver se está tudo saudável, depois vamos atrás de um zoológico.

— Não é, meu gatão?

Ruge. Concorda.

Que você continue me inspirando, Inacio!

13/12/2014

15:00

Post-Scriptum: Que tipo de amiga seria eu em abandoná-lo em um zoológico? Ele está lá em casa, no meu minúsculo apartamento, estragando meus móveis, bolinando minha gata, gastando todo meu shampoo para lavar a juba…

Edivana
Enviado por Edivana em 17/12/2014
Código do texto: T5073117
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