O BEIJO*

Paraíso? Nirvana? O que era aquela sensação maravilhosa? Meu Deus! Há quanto tempo estavam se beijando? Não! Não pense! Não pense! Pensar pode acabar com o encanto. Acabou, não têm jeito. Ainda está maravilhoso,mas a magia... A magia se foi. Com a mão esquerda faço um carinho em seu rosto e me sento, dando um fim ao momento. Ela está radiante. O olhar fascinado!-"Meu Deus! O tempo parou!". Então não foi só eu. Olho para as funcionárias da doceria. Todas em suas rotinas. O ponteiro do relógio na parede não parece ter andado muito. Bem, não estavam se beijando a mais de meia hora. Impressio Junante! Não conseguiria dizer se foi um minuto ou um ano. A Eternidade deve ser assim...

Eu tentei! Eu tentei! Eu tentei! O Senhor é testemunha que eu tentei! É, aceita, não adianta repetir isso, a verdade é que fudeu! Preciso falar alguma coisa! Mas e se falo alguma merda e estrago tudo? Olhar para ela está tão bom. A sua pela clara está radiante, todas as sardas continuam lá, a boca pequena, seus olhos castanhos, as alças estreitas de seu lindo vestido... Quando me percebo já levantei, paguei a conta e a levei para a rua, segurando-a pela mão.

A Lua e eu, Te Recuerdo Amanda, Fascinação... Era a milésima centésima septuagésima terceira vez que relia o início deste conto e não conseguia acrescentar uma palavra ou se decidir por um título. Ficou olhando uns dez minutos para o busto do Goethe que herdara de seu avô. Pensara que com a esposa e os filhos na casa da sogra talvez avançasse um pouco. Afinal era um estória baseada em recordações não relacionadas a eles. Também fortes o suficiente para precisar de paz para serem mexidas. Mas como já acontecia há dois anos e meio não acrescentou ou alterou nada. Voltou à escrivaninha do site literário aonde escrevia e clicou em "incluir texto". Iria escrever um conto sobre uma conversa que tinha ouvido outro dia no trem. -"Oi".

Gritou e pulou da cadeira, caindo de costas no chão.-"Quem é você?!! Pode levar o que quiser!!! Eu sou amigo do irmão K...!!!". Falou tudo isso enquanto se arrastava para fora do seu escritório e se levantava. De pé, em frente ao computador, um homem pardo, com a sua altura mas bem mais magro e vestido com calça jeans e camisa azul o olhava intrigado.-"Não me reconhece? Sou seu personagem. Pode ficar sossegado, não vou te machucar"

-"Meu, meu, meu, oquê?!!!!"

-"Seu personagem, do conto que acabou de ler. Desta vez eu realmente achei que ia acontecer alguma coisa. Você me deixou aberto por quatro horas! Mas quando me fechou de novo e abriu outro outra vez decidi que precisávamos conversar!"

-"Você é maluco! Isso é algum tipo de brincadeira sem graça?!"

-"Maluco, não. De saco cheio! E a brincadeira sem graça quem faz aqui é você. Comigo! Eu ia ter que ver mais alguém ser criado, desenvolvido e ir embora, de novo! Nananina não, agora é a minha vez!"

Ainda atônito, mas mais calmo, olhou para este estranho invasor com atenção. Era ele!! Numa versão mais jovem, e absolutamente mais bonita do que jamais fora, mas era ele! A roupa! Não a tinha mais, mas era a que usara aquele dia!

-"Mas do que diabos está falando?!"

-"Ora, do conto que você não termina há mais de dois anos! Vou logo avisando que eu quero um nome! Mania de não nos dar nome. E eu quero transar! Com bastante detalhes! Afinal de contas quem é essa mulher de que você fala tanto e nunca fode?".

Fiquei louco! Estou alucinando, essa é a única explicação! Calma, calma, calma. O que é real? A última coisa que me lembro é estar sozinho em casa. Estou sozinho em casa. Deu uma checada no ambiente. Todos os móveis, quadros e demais objetos estavam nos seus devidos lugares. Olhou longamente para os retratos da Hannah Arendt, de Aristóteles e de seu avô pendurados no escritório. Puta que pariu! Já que eu estou pirando vocês também podiam aparecer! Evitava à todo custo olhar para o de Dostoiévisk.

-"Ei, não é por nada, mas eu detesto ficar falando sozinho. Posso ter um pouco de atenção?".

Sentou-se. Com um gesto convidou seu estranho visitante a fazer o mesmo.-"Me dê um tempinho, por favor. Espera eu por a cabeça no lugar. Só um pouco, está bem?".

-"Tudo bem, não tenho pressa".

Entre no delírio! Entre no delírio! Entenda a lógica da coisa e faça amizade com ele. Trate-o como um paciente e, depois de entende-lo, comece a trazê-lo para a realidade. Meu Deus! Será que eu serei mais um devoto do Santo Haloperidol dos Aloprados?!!

-"Está bem, então você é um personagem de um dos meus textos. O que quer exatamente?".

-"Nossa, é tão difícil de entender! Eu quero que você me dê um destino! Quero descobrir para onde vão os personagens das estórias acabadas. É uma tortura, a cada vez que você pára de escrever conversamos entre nós...".

-"Nós quem?!!!

-"Os personagens inacabados, quem mais! Logo que você termina eles se vão. E eu fico lá, sem saber para onde ir, o que fazer. Quando os outros estão lá, sempre me invejam. Afinal você é muito cruel com todos eles. E eu fico apenas beijando uma mulher maravilhosa. Só que eles evoluem e se vão, enquanto eu...".

-"Peraí, a mulher que você beija, ela também pode aparecer?!!". Sentiu um calafrio percorrer toda sua espinha. Ela era baseada na paixão da sua vida, sua maior aventura. E seu pior pesadelo! No fundo sabia que só escrevia para viver com sua memória.

-"Não, você não a desenvolveu o suficiente. O que é outra merda! Mas já conheci outras que me dão uma base de como ela é. E aí, dá para mandar a gente para o motel e sermos felizes para sempre?"

-"Foi o que aconteceu, mas eu garanto que a felicidade passou longe desse enredo".

-"Ora, você é o autor, faça isso agora!!".

-"É o que sempre quero fazer mais não posso! Essa é exatamente a ilusão que quero desfazer quando escrevo! Por isso não consigo desenvolver mais nada após o beijo".

-"Ahh, entendi. Mas desculpe, parece coisa de boiola. Que mal pode acontecer? Se você broxa, tudo bem. Mas têm que acontecer alguma coisa... Já sei, escreva sobre o que está acontecendo agora, nosso encontro, seria inusitado!"

-"Seria plágio! Têm um italiano, ganhador do prêmio Nobel, que escreveu justamente sobre isso. Não dá também".

-"E daí, você vive se repetindo. Quem lê um conto seu praticamente leu todos. Pelo menos vai repetir outra pessoa"

A raiva enrubesceu sua face. Respirou fundo e depois de uns quinze segundos, disse-"Volta para sua casa, achei a solução!"

-"Ahh, ainda bem! Por favor, não esquece da foda!! Já são dois anos que eu vivo no maior tesão. Se eu existisse meu pau já tinha gangrenado!!"

-"Pode deixar, eu vou resolver o seu problema."

Ele assim como apareceu sumiu. Voltou ao computador e abriu no texto inacabado.

De repente, tudo virou de cabeça para baixo. Minha última visão é ela embaixo das rodas de uma caminhonete, sua cabeça esmagada. Fim

-"Vivo me repetindo?! Vai se fuder, filho da puta!!!". Desligou o computador e foi dormir.

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 14/12/2014
Reeditado em 19/07/2024
Código do texto: T5068854
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