O OXICARBÔMETRO

Dia desses estava eu na mesma praça, no mesmo banco, no mesmo jardim, absorto da vida. Olhava a sutileza dos desenhos formados no céu, naquela gostosa e inocente brincadeira entre as nuvens.

O céu não estava muito lá para peixe, mas dava para curtir as travessuras e o esconde-esconde em que cirrus tentavam ludibriar cumulus, nimbus e stratus que participavam, distantes, mais para as redondezas do Horizonte.

De soslaio, dei uma olhada na direção do Sudoeste e percebi a aproximação sorrateira de um baita “CB” (cumulus-ninbus), que vinha impondo seu corpanzil cinzento, possivelmente, no afã de acabar com a brincadeira das outras nuvens que se curtiam e manifestavam alegria. Junto com ele vinha um vento cúmplice soprado, com força, desde as entranhas e bochechas das Harpias...

Estava certo de que iria chover, mas, pelo deslizar das nuvens, pude perceber que o aguaceiro iria desabar bem mais longe e, por onde estava, as coisas não passariam de uma brisa, sem ímpeto, acompanhada por algum chuvisco sem moral.

De repente, um cidadão desconhecido tomou assento, ao lado, no mesmo banco e começou a puxar conversa. Não tinha a menor ideia de que quadrante veio ou como surgiu ali, bem no meu banco!

Meio ressabiado, voltei a atenção para o recém chegado e fiquei assuntando para ver onde pretenderia chegar e qual o rumo da sua conversa. Afinal, estava dando cumprimento aos meus afazeres de aposentado e o possível papo não iria atrapalhar em nada!

-- Desculpe, senhor! Gostaria de conversar um pouco e, vendo-lhe, também, solitário, pensei que poderia conversar um pouco e aprender sobre as coisas daqui do seu planeta!

Pra lá de surpreso, pensando que estivesse prestes a entabular conversa com um maluco de pedra, acabei dando corda...

- De que o senhor está falando? O senhor, por acaso, é de outro planeta? Não é daqui da Terra?

- Não! Estou por aqui há poucos dias e sou um viajante do espaço! Meu planeta fica no Universo de Monmácia e adquirimos tecnologia suficiente para viajarmos pelo espaço-tempo utilizando recursos da teleportação interdimensional!

- O que? Teleportação interdimensional? Mas, que diabos é isso de que está falando? O senhor pode explicar melhor? Acho que não estou ouvindo ou regulando direito!

- Não está não! É isso mesmo que lhe estou falando! Quando somos destacados para atuar em outros mundos nossos cientistas, em cumprimento a projetos do nosso governo, cuidam de efetivar os procedimentos e nossos corpos são desatomizados, transformados em energia e, nessas condições atravessamos o tempo-espaço e nos materializamos, novamente, aonde for necessário. É assim que estou diante do senhor! Vim como observador!

Nossa tecnologia está situada dentre as mais avançadas, no nosso sistema, e fazemos emprego, normalmente, dos recursos oferecidos pela “Transportação Interdimensional de Matéria”!

Achando tudo aquilo pertencente ao reino do inverossímil, resolvi pagar para ver e tratei de dar corda ao mais maluco dos malucos que cruzaram pelo meu caminho...

-- Mas, se em seu mundo vocês tem o domínio de tecnologias tão avançadas, como é que o senhor pretende aprender alguma coisa aqui nesse planeta que abriga o que há de mais rastaquera no Sistema Solar?

-- O fato de termos avanços tecnológicos aos quais vocês da Terra sequer podem imaginar, não significa que nossos iguais sejam evoluídos, no mesmo diapasão, no que se refere aos princípios fundamentais da ética, da moral, do respeito ao semelhante, do cumprimento das leis, da justiça e, principalmente do cumprimento cabal do que diz respeito aos direitos e deveres consagrados!

Refiro-me, principalmente, aos meus semelhantes que se mantém instalados nos diversos estamentos do governo ou do controle sobre os recursos materiais, econômicos, financeiros e militares de lá! Entre eles impera a má-caratice, a corrupção, o engodo, a mentira, a falácia,

-- Ué! Quanto a isso, no seu planeta as coisas acontecem igualzinho às daqui! A safadeza é tamanha que já não se sabe mais qual é o limite entre a autoridade constituída e o crime organizado! A patifaria anda à solta e os que estão por cima se protegem e se ajudam, mutuamente!

-- Então! Lá no meu planeta, não existem mais países como aqui na Terra. Instalaram uma governança global em que todos os países perderam as respectivas cidadanias transformadas que foram em uma só, a perdulariana, controlada por um Estado a cujo regime deram o nome de Social-Perdularismo. É um governo autoritário e praticamente escravagista! A esse sistema deram o nome de “Nova Ordem Mundial”!

-- Até aí, tudo mais ou menos entendido, mas ainda não atinei com a sua vinda até a este planeta tão ou mais confuso e pernicioso do que o seu! Aqui a escravidão também existe! Apenas as formas com que se apresenta é que mudaram! Somos escravos do consumismo, da voracidade dos impostos, da burocracia, da propaganda, na mídia controlada, da mentira oficializada, das ideologias, do medo, da impotência, da injustiça, da violência, da corrupção, da ciranda financeira, do crime organizado, do fisco, etc..., Isso aqui está pior do que o Inferno de Dante!

-- Ah! Mais ainda não viram nem uma nesgazinha do que aconteceu lá em Perdulus! Imagine que, no tempo em que ainda não era o governo único, no meu país, Togliz, a roubalheira no âmbito oficial, e o acumpliciamento com os demais políticos e personagens dos poderes do Estado acabaram por levar nosso Tesouro à falência e passamos a ficar impossibilitados de obter recursos em instituições internacionais às quais devíamos fortunas impagáveis! Ficamos sem crédito e sem confiança diante das outras nações da época!

Os impostos escorchantes e toda a chusma de falcatruas levaram o povo a uma situação de carência tal que os saques, depredações, ataques a estabelecimentos e coisas assim ficaram constantes. Os órgãos de repressão já não conseguiam mais debelar os movimentos raivosos e os ataques com toda a violência que você possa imaginar!

Num dia, sem que ninguém esperasse, os mais importantes figurões do governo, das finanças, dos meios de produção, etc..., se reuniram no auditório do Congresso Perdularial e deram ciência de uma nova medida que seria acionada por um decreto do nosso governante-máximo, Uror-Tufklon, um ditador inescrupuloso!

Em síntese, como única saída para conseguir recursos para o pagamento das dívidas, bem como permitir que os figurões ainda tivessem algumas fontes de falcatrua para renda, resolveram colocar em prática o projeto de um modesto servidor da Cia. De Águas e criaram um novo ministério; o Ministério do Ar!

Ué! Mas o que tem isso de absurdo? Aqui tínhamos o Ministério da Aeronáutica que foi reduzido a Comando e responde pelos assuntos da aviação militar e um pouco da aviação civil! Não é o mesmo que Ministério do Ar?

-- Nada disso! É aí que o senhor se engana! Ministério do Ar, lá em Perdulus é outra coisa!

-- Então, explique, por favor!

-- O projeto do tal funcionário, que não passava de um reles puxa-saco era um aparelho ao qual deram o nome de “oxicarbômetro”!

-- O safado convenceu alguns políticos partidários do governo de que só existiria um meio de salvar o país; era arranjar uma forma de cobrar das pessoas, pelo consumo do oxigênio aspirado e pela expiração de gás carbônico! A ideia saiu de uma conta de água, recebida em casa, na qual constava uma medida do consumo convertida em valor a ser pago.

O pessoal dos movimentos ambientais logo começou uma tremenda barulhada, apoiando a ideia, e arrastou consigo outros ativistas voltados para a preservação do meio ambiente! Achavam que essa medida poderia ser estendida à emissão de gases gástricos pelos rebanhos do país que eram dos maiores do nosso sistema!

Isso animou os governantes e demais interessados, ficando a ideia do imposto sobre a emissão de flatulências animais para uma segunda etapa!

-- Nessa conta do consumo de água, inspirando o puxa-saco, havia uma cobrança, em duplicata, pela mesma água que havia entrado, agora, por ter sido devolvida ao solo pelos ralos da sua casa! Notando que o governo ganhava duas vezes em cima da mesma água, não pestanejou! Tratou de elaborar o mesmo plano para o ar que respiramos e viu nisso, uma fonte gigantesca de arrecadação para o governo!

O resto, o senhor já pode imaginar! Lá no meu planeta, as pessoas passam o dia inteirinho com uma máscara que envolve nariz e boca! Nela há um medidor de inspiração e expiração, que marca em unidades de PSI (libras por polegada quadrada) o quanto se consome de oxigênio e libera de gás carbônico.

-- E aí? Isso deve ter criado uma burocracia do tamanho do mundo para se fazer as contas, converter e mandar os boletos para os consumidores, não é?

-- Nada disso! Como lhe disse, nossa tecnologia é avançadíssima e o puxa-saco do funcionário era um “expert” em eletrônica e propagação de ondas hertzianas! A máscara comporta, além dos filtros de entrada e saída, um circuito integrado que transforma em freqüência eletromagnética os ciclos da respiração.

Cada unidade é dotada de um código individual que é transmitido aos computadores do governo, em rede permanente, através de comunicações com satélites e Internet. A conta respectiva, a cada trinta dias é emitida pelos órgãos competentes e retirada, imagine, em um receptor que faz parte do equipamento da própria residência do consumidor! Não há escapatória!

Como a conversa tivesse sido, além de inusitada, mais do que inacreditável, quando dei por mim, quase em cima das nossas cabeças, flutuava um gigantesco cumulus-nimbus. Como companhia, trazia relâmpagos de bom tamanho e trovões que faziam o sentido do tato dar sinais de perigo!

Quando pensei em despedir-me do meu interlocutor extraterrestre, usando a próxima tempestade como pretexto, quase caí para trás! O habitante de Perdulus havia desaparecido como por encanto!

Tratei de pegar meu saco de pães que havia comprado na padaria próxima à praça e parti para casa. Ia tomar um gole de algum destilado e cair em baixo do chuveiro! Aquela tarde foi demais para mim!

Livrei-me das roupas e, antes de entrar no banho, liguei o radinho de pilhas que me acompanha no chuveiro. Não demorou muito, um repórter, na CBN dava conta de que estava sendo convocada, em Brasília, uma reunião na qual participariam políticos e figurões dos Três Poderes e dos mundos financeiro, industrial, militar e científico para tratar de um assunto de extrema importância diante do quadro em que se encontravam as finanças nacionais.

Pelo que dizia o repórter, a reunião de emergência iria discutir um projeto apresentado por um modesto funcionário e a imediata criação de um novo ministério: “O Ministério do Ar” e a produção de um aparelhinho a que deram o nome de “Oxicarbômetro”!

Só deu tempo de ouvir o estrondo do trovão! Lá fora o “CB”, raivoso, despejava água... No banheiro, fez-se um apagão...

Amelius
Enviado por Amelius em 25/11/2014
Reeditado em 30/11/2014
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