Missa das cinco

A missa das crianças era aos domingos, às nove da manhã. Uma sem-graceza. E na das dez é que costumávamos ir. Havia também as das cinco da matina, e a das sete, nessa cristã rotina.

Das tias paternas, nossas vizinhas de porta, vez ou outra iam na das sete, e voltavam falando em quem haviam visto, a cor do paramento do padre, ou, raramente, no sermão do reverendo, que, naquela época era a única locução proferida em português durante todo o ofício, pois o resto era o latinório que ia do Introibo ad altare Dei até o Ite, missa est.

Nossa vontade pirralha, no entanto, e mais que vontade, antegozo divino, era ir à missa das cinco. Sair de casa e chegar à igreja em meio àquele breu, e ver Deus iluminando o dia, paulatinamente, tal qual ele vinha fazendo desde a Criação.

Os pedidos e rogações a papai e mamãe, no entanto, é que não logravam a aprovação para aquele ato tão cristão. Negativo. Vocês são muito meninos e é um perigo sair de casa numa hora dessas. Cremdeuspadre. Acham que são curiangos?

Aquela objeção, contudo, acendia nosso fogo de curiosidade, e pia fidelidade. Internamente, pois não dava para externar depois daquela negativa levar.

Aí veio o plano. Acho que partiu da irmã Bebel: íamos passar a noite de sábado acordados e não havia como errar a hora. Papai estaria na fábrica, cumprindo seu terceiro turno, que ia das dez da noite às seis da manhã. E mamãe, cansada de tanta diária labuta, na fábrica e também em casa, estaria dormindo àquela hora, ou, se acordada, amamentando o mais caçula de sua filharada.

E finda a janta, sem televisão pra distração, começamos pela lavagem das vasilhas. Ainda nos tempos do sabão santa-luzia, o pintadinho, em barra, e cáustico que só ele; passo seguinte foi arrumar a cozinha, limpar o fogão, lavar o piso, de vermelhão; ver se tinha dever de casa em atraso, sintonizar e dessintonizar o rádio Philips, dobrar panos de prato e mais algum avulso ato.

As horas iam devagar, sobretudo no silêncio que nos impomos, mas valia a expectativa de cedinho ver Deus inda fresquinho. E quando o relógio da matriz bateu as 4 badaladas, aí foi como esperar o Santos entrar em campo, para mais uma goleada. Cada minuto era degustado com o sabor da inocência.

Quatro e meia, já de banho tomado, roupa domingueira, calçados e penteados, assaltou-nos a última dúvida: como sair de casa, sem deixar a porta destrancada, ou destaramelada, que maçada... A saída, um pouco complicada veio pela clarabóia da cozinha, pequenininha, mas a continha.

E nos pusemos em marcha:Bebel, eu, e Beu. Dobramos esquinas, baixamos e subimos quebradas, de pés-de-moleque inda calçadas e chegamos à igreja ainda com o padre na sacristia, e assentos vagos à riviria.

O olhar dos circunstantes, maioria de beatas arfantes, nadelegantes, não foi dos mais amistosos. Cativas dos bancos chegaram até a resmungar da insólita presença infantil sob aquele cheiro de incenso, penso.

Mas, aguentamos firmes. Até os ritos iniciais, pelo menos. Depois, o cochilo bateu e foi uma peleja ingrata aguentar toda a função. E já não me lembra se comungamos ou a Deus as almas entregamos. Voltar pra casa foi uma dificuldade agravada, com pernas bambas que não queriam nada, senão uma cama.

Os pais só se admiraram de não termos aparecido para o café. Já estávamos fartos do pão nosso.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 20/11/2014
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