Os pecadores
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Os pecadores
Os sinos de Santelmo repicam exatamente doze vezes, anunciando a hora da Ave Maria. Horas antes, um carro de som divulgava a missa em ação de graças e de boas-vindas ao novo pároco, o padre Castro de Luca.
O padre Castro, jovem e de beleza singular, percebia a dificuldade de ser leal aos juramentos cristãos. Desde o probatório período vocacional, fortalecia-se na fé, mantinha-se fiel ao juramento da castidade e fugia das tentações mundanas e carnais. Naquela manhã, ao rezar o terço das seis horas, o religioso sentiu intimamente cada um dos mistérios dolorosos. Às nove horas, já havia concluído, numa das capelas da cidade, a primeira missa após a ordenação, mas a ansiedade lhe era flagrante nas palavras e no semblante – também ele se preparava para sua primeira grande celebração ao anoitecer daquela noite de sábado de lua cheia.
A catedral de Santelmo, construída no Século XVI no cume de um dos morros da cidade, mantinha a pompa da época em que a Igreja arrestava vultoso poderio sobre os povos e se firmava como verdadeira obra de arte daquele caldeirão, onde o arrefecimento dos corpos se dava somente depois que as almas pecadoras se entregavam aos deleites da concupiscência. Suas fundações foram consolidadas na transição entre o medievalismo e o modernismo, com forte influência no gótico europeu: paredes finas e leves, arcos cruzados nas abóbadas, torres centrais, vitrais com rosáceas e triófilos. O efeito visual da luz solar, ao incidir nos vitrais que retratavam passagens do Evangelho, harmonizava o ambiente interior, ressalvando a beleza da inspiração arquitetônica.
Apesar dos novos tempos, a ritualística católica permanecia e todos da cidade queriam ver o novo padre. Enquanto a Lua reinava acima do horizonte, em Santelmo reinavam a autoridade da Polícia, a resignação dos cristãos e a libação do centro da cidade, entre as ruas Major Facundo e Barão do Rio Branco. Era assim quase todas as noites, desde a fundação da Vila de Fogo de Santelmo, emancipada depois da revolução industrial – uma cidade movida por sonhos e pesadelos.
Segunda chamada, doze novos repiques. Aproxima-se a hora da missa. Nos alto-falantes, Justus, coordenador da liturgia, proclama, alto e bom tom, única expressão: ‘Arrependei-vos!’.
Os fiéis começam a se achegar. Sentam-se. Acomodam-se, semblantes contritos.
O casal Felipo e Isadora se dirige a um dos assentos da primeira fila, à esquerda do altar, em relação ao púlpito reservado aos avisos e leituras litúrgicas. Observam as instalações e abancam. Eram recém-chegados de um dos grandes centros urbanos do país. Felipo era cinquentão e fora criado no campo. Não por maldade, era rude com a esposa – brutamontes nos gestos, no vestir e no trato. Nas rodas de amigo, entretanto, parecia mais ameno. Isadora, ao contrário, era assustadoramente linda!
Terceira chamada. A dúzia de badaladas que tilintaram no espaço anunciava a entrada do celebrante – mais intensas, comoveu a plateia e os anjos do céu que, harmoniosamente, davam aleluias.
Os olhos possuem energia e força vital que nos alimentam as entranhas. Quando o padre se voltou para os cordeiros e Isadora o observou detalhadamente, acendeu-se dentro dela a centelha do desejo – o coração desgovernou-se, acelerando; as pernas ficaram bambas. A senhora casada em razão de conchavos acordados entre os pais, pacata e fiel, desconheceu-se como mulher ao sentir-se invadida por um fogo que lhe brotava das entranhas mal amadas.
Findam os ritos iniciais. As duas leituras foram feitas e o celebrante iniciou a homilia. De repente, um objeto cai ao lado de Felipo. Era o terço de Isadora. Um cavalheiro, timidamente se agacha, apanha o símbolo da fé cristã que a linda mulher sempre levava consigo, no pescoço ou nas mãos. Ele sorri para ela, entregando-lhe o terço. ‘Obrigada!’ Ao caminhar em oração, rezava e pedia proteção a Deus. Debulhando as contas do terço, suplicava o desatamento dos nós e o livramento das iniquidades humanas.
Ao colocar-se novamente de pé e direcionar o olhar para o altar, o tempo colapsou. Isadora se depara com o olhar fulminante do padre que a despe. Em segundos, ela percebeu os olhos verdes do presbítero, os cabelos bem postos, o sorriso encantador e, estranhamente, desejou que brotasse algum furor do corpo daquele homem de batina branca que tão cúmplice e profundamente arrebatara-lhe o olhar indefeso. Por segundos, o sermão é interrompido. Ao retomar a fala, o padre cita a fraqueza da carne e a necessidade de homens e mulheres pedirem forças para que as tentações não os afastem da retidão do caminho que leva ao Pai e à salvação.
Inicia-se o rito da Comunhão. ‘Felizes os convidados para a Ceia do Senhor!’. Ansiosa, Isadora aguarda o momento de receber a hóstia consagrada. ‘Corpo de Cristo’ – diz o padre Castro, fitando a jovem senhora. ‘Amém!’ – foi a resposta. Quem poderia entender as intenções daqueles olhares que se cruzavam e os reais desejos daquelas bocas?
‘Quem não tem pecado que atire a primeira pedra’ – a brisa que invadiu o espaço interior da catedral pareceu soprar nos ouvidos de Isadora. A citação ecoou no íntimo daqueles corações assustados, pouco depois de ambos desejarem a morte.
‘Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe’ – conclama o padre, ao final da missa. Entretanto, com perscrutador olhar, não perde nenhum detalhe do corpo da jovem Isadora que sai da igreja de braços dados com o marido, sem olhar para trás.
Naquela mesma noite, enquanto o padre se martirizaria aos pés do Santíssimo, pedindo clemência e rezando incontáveis credos, Isadora seria usada pelo marido mais uma vez. Ambos, Castro e Isadora, entendiam a dimensão do que sentiam e as consequências de prosseguirem com tamanho vitupério. O coração teria, deveras, razões desconhecidas pela própria razão? O padre adormecera com o terço nas mãos; Isadora, com a certeza do afloramento de um amor impossível.
No dia seguinte, incapaz de suportar a angústia do pecado que a estava mitigando as forças, Isadora resolve confessar-se. Entra na fila das beatas e aguarda. Quando se senta, sem delongas, pede perdão e assevera:
– Padre, sou pecadora. Ajude-me! Nem toda reza do mundo me fará controlar o que estou sentindo por um homem proibido.
Apesar do anonimato que o confessionário proporcionava, o representante de Deus aqui na terra sabia que se tratava da mulher que o impedira de dormir na noite anterior, provocando-lhe calafrios, desejos e polução noturna.
– Reze, minha querida filha. O poder da oração é imensurável. Seja perseverante e reze – respondeu o pároco, sem convencimento.
– Para que rezar, padre? O que me apavora é o mesmo sentimento que o senhor sente por mim. Percebi no seu olhar que você também me deseja.
– Sou casado com a Igreja e somente a ela devo fidelidade, carinho, trabalho e amor. Se há amor entre nós, é fraterno. Rezarei para que possamos aceitar essa realidade, com resignação. Não permitamos que demônios nos desviem dos desígnios do Pai. Rezarei por nós dois.
– Somos mulher e homem, padre. Ontem, quando nossos olhares se cruzaram no momento da comunhão, senti que havia um homem que me desejava e correspondia a esse amor repentino e proibido, talvez, mas real.
– Precisa ir, filha. Que Deus nos abençoe – é a palavra final do padre Castro, antes de se retirar do confessionário fazendo o sinal da cruz.
Na missa da noite do dia seguinte, o padre procura Isadora entre os fiéis. Nenhum sinal. Celebrou sem a devida atenção, pois os pensamentos dele estavam longe, voltados para a incerteza do futuro.
Dias se passaram sem que Isadora retornasse. Os ânimos arrefeceram. Numa noite de lua crescente, com nuvens pesadas denunciando tempestade iminente, Isadora reaparece. Usava vestido longo, os cabelos estavam soltos, a maquiagem discreta realçava o brilho dos grandes e lindos olhos verdes... Com a mão esquerda, Isadora era conduzida pelo marido; da direita, pendia o inseparável terço.
A celebração foi tensa, a homilia pareceu sem sentido – Castro e Isadora estavam dispostos a resistirem e não trocaram nenhum olhar.
Na hora da saída, um dos amigos de Felipo o convida para bebericar no bar da pracinha, na Rua Floriano Peixoto. Felipo e alguns beberrões partem para o bar, protegendo-se da noite fria que prometia tempestade.
Ao perceber que o marido saíra para beber, Isadora decide permanecer na igreja sem despertar curiosidade nos demais. Oportunamente, dirige-se ao padre e pede que ele benza a Bíblia que havia comprado recentemente. O pároco a convida para entrar. Lá fora, a velocidade dos ventos cresce, gradualmente – a tempestade se aproxima de Santelmo.
– Pedi a Deus um sinal – inicia Isadora.
No exato instante da declaração, torrente chuva banha as ruas de Santelmo. Trovões assustam as criancinhas da cidade e raios clareiam a escuridão que se formou depois que a queda de duas árvores provocou pane elétrica no centro. Isadora estava decidida e prossegue:
– E o sinal, padre, é estarmos aqui agora, na casa de Deus, sozinhos. Meu marido está num bar, enchendo a cara... E estamos aqui.
– Sim, filha. Aqui estará protegida da chuva, dos trovões e das tentações... Estou indo embora, Isadora – declara o padre, de supetão.
– Vai fugir do que sente, padre? Mentir não é pecado? Mentirá por toda sua vida, fingindo que não me quer? Castro de Luca, eu amo você!
Antes da resposta, Isadora se aproxima do clérigo e o beija, calorosamente. A resistência havia sido rompida. As mãos se buscavam. As vestes foram jogadas ao chão e ali mesmo, no chão frio da igreja, eles se amaram. Testemunhas: as velas da sacristia, a brisa que soprava num brinde ao prazer e os trovões, contrastando com a luz interior que irradiava daqueles amantes. Ali mesmo, entrelaçados, adormeceram.
Ao amanhecer, Isadora é enxotada pelo padre que a manda, rispidamente, ir embora. Ela estava feliz e acreditava nas bênçãos de Deus – não temia nenhum castigo, pois o amor não merece repreensões. O padre, imediatamente após a saída de Isadora, iniciou vigorosa autoflagelação. Os açoites deixavam sulcos de sangue que banhavam a pele do religioso, escorrendo por todas as ranhuras deixadas pelas unhas de Isadora na noite anterior, quando, em delírio, entregou-se a ele.
Naquela manhã, os portões da igreja permaneceram cerrados. Os moradores estranharam, buscaram informações sobre o padre, mas nenhuma resposta relevante lhes foi dada. Bateram na porta, chamaram alguns religiosos e assistentes da cúria, mas nada de o padre aparecer. Decidiram arrombar um dos acessos ao templo. Quando os raios de luz incidiram no centro da catedral, encontram o padre Castro morto, pendurado pelo pescoço – o sacerdote montou uma engenhoca suicida e saltou de um banquinho, pendendo a poucos centímetros do assoalho. Sob ele, a batina branca, ensanguentada, em cima da qual amou Isadora. Alguns homens retiram o corpo do padre da posição em que estava e o colocam no chão.
A notícia se espalhou pela cidade. Isadora, ao saber da tragédia, correu em direção ao templo. Ao ficar frente a frente com o corpo desfalecido do sacerdote, retirou uma cruz metálica do altar onde o amante havia celebrado a última missa na noite anterior. Volve-se para os presentes e questiona:
‘Meu amor foi proibido? Sou pecadora? Não! Não mereço morrer em nome desse amor, mas sei quem mais merece morrer!’.
Felipo, ao tentar segurar a esposa, é alvejado pela cruz metálica e tomba por sobre o corpo do padre Castro.
Justus, carregando as chaves das portas da catedral, depois de se benzer por três vezes ao lado dos corpos, sentencia: ‘Arrependei-vos!’.
O vento sopra e assobia em monocromáticos silvos. Santelmo passará por dias de escuridão e noites assombrosas – arrepios de auras pairando, aparentemente consoladoras: ‘Arrependei-vos!’. ‘Arrependei-vos!’. ‘Arrependei-vos!’.
Sem olhar para trás, Isadora parte, decidida a entregar o corpo e a alma à própria sorte.