473-A ÚLTIMA PROCISSÃO DO CAVÁRIO

— Com o devido respeito, seu padre, não posso mais carregar a cruz na procissão.

— Posso saber qual a causa, seu Jerê?

— Tou com hérnia. Não devo carregar peso. E a cruz é muito pesada.

A recusa de seu Jeremias criava um impasse, pois há muito tempo ele fazia o papel de Jesus na procissão do Calvário. E a Semana Santa sem a procissão do Calvário não era a mesma.

— Temos de arranjar um novo Jesus. — Determinou o padre Ranzine ao sacristão, seu braço direito para todas as ocasiões. — E bem depressa.

Zé da Vela (como era conhecido o sacristão) não demorou em indicar o substituto.

— Tem o Samuel Ferreiro. O homem é forte e barbudo.

— Forte até demais. Mais parece um Sansão.

— Mas é o único que agüenta a cruz.

Samuel foi chamado e aceitou de pronto a incumbência. Foi até a cripta da Igreja Matriz, experimentou o peso da cruz e não teve dificuldade em arrastá-la de um lado para o outro.

— Precisa apenas de um treino. — Comentou Zé da Vela. — Mas pode treinar aqui mesmo.

A Procissão do Calvário era o ponto máximo da celebração da Semana Santa em São Roque da Serra. Após a Procissão do Encontro, a Passagem do Martírio, a Cerimônia do Lava-pés, cada qual no dia da semana pré-determinado, a dramatização da caminhada de Jesus até o Calvário, na Sexta-Feira Santa reunia todos os habitantes da cidade e do município.

Partia da Igreja Matriz, percorria diversas ruas na direção do Alto da Caixa Dágua. Ali, com a visão abrangente e sob os olhares ansiosos dos fiéis e curiosos, Jesus era amarrado à cruz e esta levantada, numa réplica quase perfeita da Crucificação no Monte do Calvário.

A representação era enriquecida com os personagens da época, que acompanhavam o cortejo: Maria, a mãe de Jesus, Madalena, alguns apóstolos, centuriões e Simão Cirineu, que, em uma das quedas do Cristo, o ajudava a se levantar.

Assim acontecia há anos sem conta. O evento estava atraindo até turistas da capital e já constava do Calendário Turistico da Prefeitura.

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Houve a necessidade de adaptar os trajes, ou melhor, o manto de Cristo, pois a estatura de Samuel era bem maior do que Jeremias. O que foi providenciado a tempo.

Além de ser um homem forte, de elevada estatura, Samuel, ferreiro por profissão, era pessoa de difícil trato. Tinha a fama de brigão, e seus desafetos se contavam às dezenas na cidade. Alguns eram realmente inimigos do novo Jesus.

Corria à boca pequena que, devido a esse temperamento, Samuel portava sempre consigo um punhal, escondido no cós da calça, debaixo da fralda da camisa. Isto não era do conhecimento do padre Ranzine nem do sacristão, que ignoravam também um fato importante: um dos centuriões, justamente aquele que manejava o chicote, era inimigo de Samuel.

Sexta-feira à tarde. Por volta de uma hora, sai a procissão. O sol num céu de azul sem nuvens, queima as cabeças desabrigadas dos fiéis, as costas dos centuriões e assa o ferreiro debaixo do grosso manto vermelho de algodão. A encenação é perfeita. A pompa era estabelecida por uma encenação rigorosa. Jesus escorrega, cai, é levantado por Simão Cirineu. O centurião que maneja o chicote bate forte no madeiro, — SLAP, SLAP, SLAP — simulando espancar Jesus. O chicote tem tachas nas pontas, a fim intensificar o som das chicotadas.

Ao errar uma das chicotadas, o látego atinge o torso de Samuel, arranhando a pele e fazendo estrias de onde brota o sangue. Pessoas que estão próximas extasiam-se com o realismo da encenação.

Samuel retesa os músculos, solta um gemido de dor e se detém. Por alguns instantes o tempo parece parar. Todos ficam imóveis. O centurião olha aterrorizado para Jesus. O ferreiro, surpreso, revida o olhar para o centurião.

A seguir, a cena volta a ter movimento. Porém, uma movimentação fora do roteiro conhecido: Samuel joga a cruz no chão, eleva-se em toda sua estatura, livra-se do manto, exibindo-se o gigante que é, vestido apenas de calção. Passa a mão por trás do calção, tira um punhal, arremetendo-se na direção do centurião.

O centurião, ao se dar conta da besteira que fizera, joga o chicote na direção dos fiéis, abrindo um espaço para a fuga. O elmo salta da cabeça.

— Seu desgraçado, filho-da-puta. — Grita Samuel, ex-Jesus, os olhos injetados de sangue e de raiva, brandindo o punhal acima da cabeça. — Vou te tirar os culhões, filho duma égua.

Padre, sacristão, coroinhas e portadores de tochas, que vinham logo após Jesus, ficaram horrorizados com as cenas que se desenrolavam bem à sua frente. O pessoal, afastado pelos dois personagens do drama real, debandou-se. Do lado oposto, a curiosidade superou o susto e a turma se ajuntou ao lado da cruz.

Perseguido e perseguidor desceram ladeira abaixo numa corrida de vida ou morte. Perderam-se pelas ruas e vielas da cidade.

A procissão parou. Não houve como prosseguir. O inusitado do acontecido deixou todo mundo desarvorado. O Padre Ranzine levantou as mãos para os céus, num sinal de desespero. O sacristão corria da cruz para o povo e voltava, as mãos na cabeça, sem saber o que fazer. Simão Cirineu tentou levantar a cruz, sem conseguir.

Muitos correram até o alto da elevação, onde seria levanada a cruz, na expectativa de conseguirem um bom lugar para o espetáculo, qualquer que fosse.

Padre Ranzine ajoelhou-se e começou a rezar, silenciosamente. Os fiéis remanescentes o acompanharam no gesto simples. Depois de alguns minutos, levantou-se e dirigiu-se às poucas pessoas ao seu lado.

— Vamos levar a cruz de volta para a Matriz. A procissão está cancelada.

Uma dezena de homens se apresentou para carregar a pesada cruz, devolvida com respeito à cripta da Igreja.

Assim terminou aquela que foi, na pequena cidade, a última procissão do Calvário.

ANTONIO GOBBO

S.S.Paraíso, 15 de janeiro de 2008 –

Conto # 473 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/10/2014
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