457-DESLIZE DE JUIZ EM JURI POPULAR
DESLIZE DE JUIZ EM JURI POPULAR
— O réu não pode nem deve pagar por um crime no qual é tão vítima quanto o jagunço que ele eliminou, por um contrato de morte patrocinado por um dos mais importantes cidadãos de nossa cidade. Este homem de nenhuma instrução, que não aprendeu ofício, sem nenhuma habilidade, que ingressou no crime por para sobrevivência, deve ser absolvido...
O juiz Maximiniano Gouveia escutava atento a peroração do advogado de defesa. Era seu primeiro júri e estava preocupado. Tendo sido nomeado recentemente para a comarca de São Roque da Serra, tinha diante de si a incumbência de julgar um homem cujo ofício era matar por dinheiro.
Sentado perante o tribunal, com roupas limpas mas muito modestas, cabeça baixa, as mãos cruzadas sobre o peito, parecia antes um crente em oração do que um assassino sobre cujas costas pesava a fama de muitas mortes por encomenda. Sua reputação corria os rincões do interior do estado.
O doutor Gouveia, entretanto, não se fixara apenas nos autos para este julgamento. Preocupado em realizar um julgamento isento e equânime, estudara o caso há meses, com cuidado, a fim de saber de tudo, em todos os detalhes e exarar uma sentença que o elevasse no conceito de seus pares. Noites e noites varadas em claro, dias gastos em indagar, pesquisar, perguntar, indo muito além dos autos da polícia, extrapolando às vezes até sua função, mas sempre a fim de descobrir a verdade e fazer a justiça.
Manoel Curau tinha fama assentada. Muitas tocaias e diversas mortes lhe eram imputadas pela voz popular. Esperto, não deixava pistas nem pegadas. Mas agora, preso em flagrante por um mero acaso, ali estava no banco dos réus.
Preso, não negou o fato. Estava ali, sim, matara, sim, mas a soldo de Coronel Juventino, o maior proprietário de terras da região. Entretanto, nada havia que provasse a ligação entre o jagunço e o coronel, era a palavra de um e a negativa de outro. Era a fama a prejudicar o assassino confesso, conta a posição de homem ilustre a beneficiar o pressuposto mandante. O coronel sequer se dignara a ir à delegacia prestar depoimento. Ignorou a intimação e o delegado o visitou em seu palacete para ouvir suas declarações.
Isto tudo e muito mais o doutor Gouveia examinara e estudara à exaustão. A sorte (ou a falta de sorte) de Manoel Curau, aliás, Manoel Bento da Silva, parecia estar selada.
A escolha do júri fora bem feita, com o advogado da defesa e o promotor selecionando quem poderia ou não fazer parte do grupo que iria, em última instância, determinar o destino do réu. Ficou, enfim, constituído por seis homens e uma mulher.
A sessão seguiu noite adentro, seguiu pela madrugada. Houve réplica de promotor e defensor. Preocupado com a situação dos jurados, o doutor Gouveia mandou que fosse servido café. Quando o grupo entrou para a sala, já depois das duas da manhã, além das garrafas térmicas de café, instruiu aos ajudantes que levassem sanduíches, antes de a sala ser fechada para a deliberação.
Finalmente, o júri se apresentou com o resultado, que não era de unanimidade: por seis votos contra um, o réu foi considerado culpado.
O Juiz exarou a sentença. O réu ouviu calado e impassível.
Talvez penalizado com a situação do réu, talvez querendo dar uma satisfação aos assistentes, ou talvez desejando ficar nos anais da história como um juiz humano, fez o que nunca deveria ter feito.
— O réu tem alguma coisa a declarar? — Perguntou, de forma amena. — Se quiser, pode falar.
Manuel Bento da Silva, até então uma estátua recolhida em silêncio, acordou de repente, levantou-se e falou em alto e bom tom:
— De menas aquela ali (e apontou para a única jurada) e este homem aquí, ó, (e apontou para o advogado de defesa)... De menos esses dois... Quero que o dotô juiz, o promotô, esses outro jurado, mais essa cambada que tá assistindo aqui...quero que ocêis tudo vão pra puta que pariu.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 19 de outubro de 2007
Conto # 457 da Série Milistórias