Vozes na Cozinha
Acordo com barulhos na cozinha. Marido viajando, ligo todos os alertas de perigo e fico escutando. Sim, não restam dúvidas. Há vozes na cozinha e conversam tranquilamente, como se fosse natural estarem ali, na minha cozinha. Em alguns momentos, há risos. Nunca a pressa ou a discrição de ladrões.
Depois do que me pareceu uma eternidade, decidi que não poderia mais ficar ali, trancada no quarto, enquanto intrusos divertiam-se em minha cozinha. Abri a porta silenciosamente, o aparelho de choque bem firme na mão e esgueirei-me pelo corredor. Foi quando senti, forte, o cheiro. Café!!
Pessoas: homens, mulheres e talvez alguma criança, conversavam animadamente na minha cozinha e faziam café! Mas era um descalabro isso! Só faltava estarem comendo também o meu bolo vegan de chocolate!!
Empurrei a porta com força, justamente a tempo de ver o garotinho passar uma grossa camada de requeijão numa fatia também larga do bolo.
- Não! – gritei. – É um bolo vegan. Não se passa sofrimento animal num alimento vegan!!
Ele largou a faca, assustado. Os demais, olharam-me com interesse. Dois homens, o menino e três mulheres, todos com a aparência sofrida e cansada da dura lida do campo, a pele esturricada pelo sol inclemente do nordeste brasileiro. A mulher jovem e a idosa possuíam narizes aduncos e traços muito parecidos ao do homem mais velho, cuja idade estaria próxima à da terceira mulher. O rapaz não se parecia com ninguém ali, tinha a pele maltratada, como se houvesse perdido a guerra contra as espinhas poucos anos antes.
Sem esperar qualquer reação minha, o homem mais velho veio ao meu encontro, braços abertos:
- Enfim, resolveu acordar!
Antes que ele pudesse me abraçar, saltei para o lado, o aparelho de choque em riste:
- Quem é você? – gaguejei. Em seguida, corrigi. – Quem são vocês!? O que estão fazendo na minha cozinha?
- Não está nos reconhecendo? – perguntou a velha senhora, com doçura.
- Você nos criou. – completou a outra mulher.
- Eu... criei... vocês!? – balbuciei.
- E destruiu também. – completou o rapaz bexiguento, que, até então, parecia mais interessado no café fumegante que tinha em mãos.
- Foi. - completou o garotinho, sem mágoa.
- Do que é que vocês estão falando!? – exasperei-me.
- Não está mesmo nos reconhecendo? – perguntou novamente o homem.
- Não! Não faço ideia de quem sejam vocês.
- Ora, Nena, Areia!! – disse a mulher.
- Areia? Que areia, meu Deus!?
- Seu conto, Nena. Em que batemo a cachuleta debaixo das duna.
- Mas...
- Júlio! Muito prazer! – disse o homem, apertando firmemente a minha mão e sacudindo-a, fazendo com que todo o meu corpo sacudisse junto.
Em seguida, ele puxou a mulher para mais perto e apresentou:
- Esta é a Luzia.
Luzia também cumprimentou-me com um aperto de mão. Um tanto mais delicado, embora igualmente firme e decidido.
- Aqueles são Bebel e Uelinton. – apontou para a moça e o menino – O rapaz é meu genro, Pedro.
Os três acenaram de onde estavam.
- E eu, a mãe dele. – aproximou-se a velhota, com desenvoltura.
- Dona Isaura. – lembrei.
- Isso. – deu-me um forte abraço.
- Mas, a senhora era...
- Sim, filha, uma cafuletada. Você foi cabrunquenta comigo. Me fez sertaneja, cheia de possança, pra depois me por peba com um derrame. Ceará tem disso, não, filha!
Tive que rir.
- Eu confesso que estou feliz com a visita de vocês, ver o quanto estão bem e alegres, mas… A que devo a honra?
- Ah! Miolo de pote! - disse Isaura.
- Hein!?
- Pouca coisa. - emendou Luzia. Uma coisica de nada.
- E o que seria essa coisica? - insisti.
- Nós num quer desexistir. - respondeu Pedro, levantando-se e deixando a caneca em cima da mesa. Em seguida, prosseguiu, os olhos brilhando. - Eu ia ter um bruguelo com a minha Bebel.
- E eu, um irmãozinho. - o menino emendou.
- Mais um, né, Uelinton? - respondi, rindo.
Ninguém mais achou graça e percebi que o assunto era sério. Dona Isaura aproximou-se.
- E eu, que nem tive chance de ver meu filho transmudado? Me matou no meio da história… Pressa de rebolar no mato tudo o que é faúla!
- Não é isso, dona Isaura… - tentei explicar.
- Seja o que for, estamos aqui para pedir que mude. Não é justo! Foi eu amar a vida e a família, soflagrou dar fim em nós tudo. - implorou seu Júlio.
- Mas, eu ia ter que reescrever o final. E este meu conto é especial pelo final que teve. Ia terminar com a duna indo embora e vocês vivendo felizes para sempre? Coisa mais piegas!
- Melhor piegas que cruel! Aposto que muito leitor reclamou.
- Então!? A ideia é essa! Causar polêmica, indignar. Se terminasse como vocês estão querendo, seria texto pra ser esquecido logo. Vocês viveriam na história, só até o momento do seu final. Do jeito que fiz, você viveram por mais tempo, na mente do leitor.
- Mas, e se você nos deixasse viver e continuasse a história por mais tempo… Quem sabe, um novo Vidas Secas?
- Valeu a tentativa, mas entre Nena e Graciliano Ramos há, pelo menos, umas duas gerações de evolução literária!
Eles ficaram calados por algum tempo. Aproveitei para completar:
- Olhe pelo lado bom! Estão mesmo como se estivessem no paraíso. Dona Isaura até voltou a andar e a falar! Se a história seguisse, não ia ter cura, não!
- Isso era outra coisa que eu queria pedir… - tentou argumentar a senhora.
- Nada disso! Seu derrame serviu para aproximar o Uelinton, dar maturidade a ele. E também, para mostrar a fidelidade da Sapeca. Não mudo! E, por falar nisso, cadê ela?
- Tá por aí, de teretetê com os seus cachorros.
Foi Luzia dizer isso e chegou a cadela. Era enorme! Eu lembrava de tê-la criado de porte grande, mas aquilo ali era um exagero. Ela caminhou na minha direção, o rabo balançando e chocando-se contra os móveis da cozinha. Quando chegou bem perto, parou à minha frente e começou a lamber-me a cara, sem parar, até que acordei e dei de cara com uma de minhas cachorrinhas, que ainda me lambia o rosto, agitada. Olhei em volta e percebi que havia dormido sobre o micro, na mesa da cozinha. Não encontrei mais nenhuma das minhas visitas inesperadas. Então era só um sonho? Puxa! Pareceu tão real!
Botei a cadelinha no chão e resolvi ir para a cama.
O sono demorou a vir, enquanto eu me batia em hipóteses que pudessem dar um outro destino a essas personagens, tão queridas.
Foi quando ouvi vozes na cozinha. Levantei-me num pulo e corri ao encontro delas novamente.
Adivinha! Eram ladrões...
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Encontro com uma personagem
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.com/encontrocomumapersonagem.htm
Depois do que me pareceu uma eternidade, decidi que não poderia mais ficar ali, trancada no quarto, enquanto intrusos divertiam-se em minha cozinha. Abri a porta silenciosamente, o aparelho de choque bem firme na mão e esgueirei-me pelo corredor. Foi quando senti, forte, o cheiro. Café!!
Pessoas: homens, mulheres e talvez alguma criança, conversavam animadamente na minha cozinha e faziam café! Mas era um descalabro isso! Só faltava estarem comendo também o meu bolo vegan de chocolate!!
Empurrei a porta com força, justamente a tempo de ver o garotinho passar uma grossa camada de requeijão numa fatia também larga do bolo.
- Não! – gritei. – É um bolo vegan. Não se passa sofrimento animal num alimento vegan!!
Ele largou a faca, assustado. Os demais, olharam-me com interesse. Dois homens, o menino e três mulheres, todos com a aparência sofrida e cansada da dura lida do campo, a pele esturricada pelo sol inclemente do nordeste brasileiro. A mulher jovem e a idosa possuíam narizes aduncos e traços muito parecidos ao do homem mais velho, cuja idade estaria próxima à da terceira mulher. O rapaz não se parecia com ninguém ali, tinha a pele maltratada, como se houvesse perdido a guerra contra as espinhas poucos anos antes.
Sem esperar qualquer reação minha, o homem mais velho veio ao meu encontro, braços abertos:
- Enfim, resolveu acordar!
Antes que ele pudesse me abraçar, saltei para o lado, o aparelho de choque em riste:
- Quem é você? – gaguejei. Em seguida, corrigi. – Quem são vocês!? O que estão fazendo na minha cozinha?
- Não está nos reconhecendo? – perguntou a velha senhora, com doçura.
- Você nos criou. – completou a outra mulher.
- Eu... criei... vocês!? – balbuciei.
- E destruiu também. – completou o rapaz bexiguento, que, até então, parecia mais interessado no café fumegante que tinha em mãos.
- Foi. - completou o garotinho, sem mágoa.
- Do que é que vocês estão falando!? – exasperei-me.
- Não está mesmo nos reconhecendo? – perguntou novamente o homem.
- Não! Não faço ideia de quem sejam vocês.
- Ora, Nena, Areia!! – disse a mulher.
- Areia? Que areia, meu Deus!?
- Seu conto, Nena. Em que batemo a cachuleta debaixo das duna.
- Mas...
- Júlio! Muito prazer! – disse o homem, apertando firmemente a minha mão e sacudindo-a, fazendo com que todo o meu corpo sacudisse junto.
Em seguida, ele puxou a mulher para mais perto e apresentou:
- Esta é a Luzia.
Luzia também cumprimentou-me com um aperto de mão. Um tanto mais delicado, embora igualmente firme e decidido.
- Aqueles são Bebel e Uelinton. – apontou para a moça e o menino – O rapaz é meu genro, Pedro.
Os três acenaram de onde estavam.
- E eu, a mãe dele. – aproximou-se a velhota, com desenvoltura.
- Dona Isaura. – lembrei.
- Isso. – deu-me um forte abraço.
- Mas, a senhora era...
- Sim, filha, uma cafuletada. Você foi cabrunquenta comigo. Me fez sertaneja, cheia de possança, pra depois me por peba com um derrame. Ceará tem disso, não, filha!
Tive que rir.
- Eu confesso que estou feliz com a visita de vocês, ver o quanto estão bem e alegres, mas… A que devo a honra?
- Ah! Miolo de pote! - disse Isaura.
- Hein!?
- Pouca coisa. - emendou Luzia. Uma coisica de nada.
- E o que seria essa coisica? - insisti.
- Nós num quer desexistir. - respondeu Pedro, levantando-se e deixando a caneca em cima da mesa. Em seguida, prosseguiu, os olhos brilhando. - Eu ia ter um bruguelo com a minha Bebel.
- E eu, um irmãozinho. - o menino emendou.
- Mais um, né, Uelinton? - respondi, rindo.
Ninguém mais achou graça e percebi que o assunto era sério. Dona Isaura aproximou-se.
- E eu, que nem tive chance de ver meu filho transmudado? Me matou no meio da história… Pressa de rebolar no mato tudo o que é faúla!
- Não é isso, dona Isaura… - tentei explicar.
- Seja o que for, estamos aqui para pedir que mude. Não é justo! Foi eu amar a vida e a família, soflagrou dar fim em nós tudo. - implorou seu Júlio.
- Mas, eu ia ter que reescrever o final. E este meu conto é especial pelo final que teve. Ia terminar com a duna indo embora e vocês vivendo felizes para sempre? Coisa mais piegas!
- Melhor piegas que cruel! Aposto que muito leitor reclamou.
- Então!? A ideia é essa! Causar polêmica, indignar. Se terminasse como vocês estão querendo, seria texto pra ser esquecido logo. Vocês viveriam na história, só até o momento do seu final. Do jeito que fiz, você viveram por mais tempo, na mente do leitor.
- Mas, e se você nos deixasse viver e continuasse a história por mais tempo… Quem sabe, um novo Vidas Secas?
- Valeu a tentativa, mas entre Nena e Graciliano Ramos há, pelo menos, umas duas gerações de evolução literária!
Eles ficaram calados por algum tempo. Aproveitei para completar:
- Olhe pelo lado bom! Estão mesmo como se estivessem no paraíso. Dona Isaura até voltou a andar e a falar! Se a história seguisse, não ia ter cura, não!
- Isso era outra coisa que eu queria pedir… - tentou argumentar a senhora.
- Nada disso! Seu derrame serviu para aproximar o Uelinton, dar maturidade a ele. E também, para mostrar a fidelidade da Sapeca. Não mudo! E, por falar nisso, cadê ela?
- Tá por aí, de teretetê com os seus cachorros.
Foi Luzia dizer isso e chegou a cadela. Era enorme! Eu lembrava de tê-la criado de porte grande, mas aquilo ali era um exagero. Ela caminhou na minha direção, o rabo balançando e chocando-se contra os móveis da cozinha. Quando chegou bem perto, parou à minha frente e começou a lamber-me a cara, sem parar, até que acordei e dei de cara com uma de minhas cachorrinhas, que ainda me lambia o rosto, agitada. Olhei em volta e percebi que havia dormido sobre o micro, na mesa da cozinha. Não encontrei mais nenhuma das minhas visitas inesperadas. Então era só um sonho? Puxa! Pareceu tão real!
Botei a cadelinha no chão e resolvi ir para a cama.
O sono demorou a vir, enquanto eu me batia em hipóteses que pudessem dar um outro destino a essas personagens, tão queridas.
Foi quando ouvi vozes na cozinha. Levantei-me num pulo e corri ao encontro delas novamente.
Adivinha! Eram ladrões...
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Encontro com uma personagem
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.com/encontrocomumapersonagem.htm