Todos os Pianistas Merecem o Céu?

Era um novo piano! Marco Antônio estava extremamente animado e ansioso para experimentar o enorme piano touch. Quando alguém com um microfone flutuante lhe anunciou o nome, ele entrou no palco diante de uma plateia de poltronas vazias. Isso o fez se sentir menos pressionado. Sentou-se no banquinho confortável, também com tecnologia touch; assim que se sentou o banco fez um barulhinho e calculou rapidamente a altura e peso do músico, para posicionar da maneira que fosse mais confortável.

Marco Antônio correu os olhos pela superfície monocromática e lisa do piano. Achou incrível como a superfície com teclas desenhadas era reflexiva e reluzente. Como demorou para começar a tocar alguma coisa, o teclado esmoreceu, dando lugar à um longo retângulo branco onde no centro piscava lentamente a frase “deslise para desbloquear”. Isso despertou Marco Antônio de seu transe de admiração pelo aparelho musical altamente tecnológico. O músico deslisou o dedo na superfície branca e brilhante e trouxe de volta as teclas planas monocromáticas. Primeiro devagar, experimentou o toque de algumas teclas. O teclado era sensível à pressão de seu toque. À altura de seus olhos as notas brilhavam conforme eram tocadas e a partitura mudava de página uma vez que todas as notas eram consumidas.

Logo o músico estava tocando animadamente e divertindo os técnicos que estavam no palco avaliando a usabilidade do novo produto que prometia ser uma revolução no campo musical.

Depois de Marcos Antônio, diversos músicos tiveram o prazer de experimentar o incrível piano touch.

Quando chegou em casa, sentindo na alma a solidão e no bolso a miséria, Marco Antônio decidiu arquitetar um plano para roubar para si o piano. Sua ideia era roubar o piano para si e então vendê-lo para quem fosse pagar mais. Porém, estava demasiadamente faminto para pensar em uma estratégia de roubo. Depois de tirar a rouba engomada de pianista, Marco Antônio foi até a esquina e subiu no muro do vizinho para roubar tangerinas. Depois, passou um pouco de sujeira da calçada no rosto e rasgou mais um pedacinho de sua calça para sentar-se na calçada pedindo pão. Naquele final de tarde laranja e silencioso pouquíssimas pessoas pararam para lhe dar atenção. Depois de alguns longos anos de solidão e esperança, um dos músicos que tiveram o prazer de experimentar o piano touch com Marco Antônio, passou e lhe ofereceu um pedaço de pão. Marco Antônio agradeceu o pão ao músico, que não o reconheceu, e voltou para casa.

Devorou com delicadeza e desânimo o seu delicioso sanduíche de tangerina com brócolis e pensou em um bom plano para roubar o piano e ficar rico. A melhor ideia que lhe veio à mente fora se inscrever para testar o piano novamente. Porém, havia um problema que tinha 99% de chance de afetar negativamente o seu plano… como tinha ficado durante 5 anos na calçada pedindo pão, as inscrições para testar o piano já havia terminado.

Decepcionado e sentindo mais uma vez as carícias soturnas da melancolia afagar seus piores sentimentos de abandono e desesperança, Marco Antônio decidiu ir até um restaurante chique onde era amigo do dono. Luciano sempre o deixava entrar e comer algumas coisas do menu de graça, caso não fossem muito caras. Marco Antônio, por bom senso, sempre pedia as coisas mais simples. Normalmente pedia salame de cascavel com plástico bolha e uma garrafa de vinho de damascos do Afeganistão Asiático pra desarmonizar o paladar.

Desanimado e desatento, Marco Antônio o observava o palco vazio, preenchendo-o com a imagem vívida e em alto contraste, porém desfocada, de si mesmo sentado diante do grande piano touch que outrora tivera o prazer de experimentar e pelo qual alimentara a descontrolável vontade de sequestrá-lo a fim de enriquecer seus bolsos com papéis coloridos e sua alma com a segurança de quem pode ter tudo o que não precisa. Logo, parou de fantasiar que estava no palco tocando o piano, mas o piano lá permaneceu. Marco Antônio sacudiu a cabeça, mas o piano insistia em ficar no palco, cintilando em prata, reluzindo sob as luzes do show. Quando olhou atentamente para onde havia posicionado uma imagem falsa de si mesmo, percebeu que na verdade era o músico que participara do teste e que lhe dera pão na calçada.

Quando o habilidoso pianista pausou o show e foi tomar um trago no balcão do restaurante, e ser aplaudido de perto pelos clientes, e ser submetido à algumas sessões de autógrafos, e cansou de sorrir para todos, o homem abriu caminho na multidão e procurou a saída, para ir fumar um desodorante na calçada. No meio do caminho, reconheceu Marco Antônio.

Os olhos dos pianos se encontraram e o brilho no olhar de um tentou iluminar as sombras do olhar do outro. O pianista que se aproximava com avidez no andar e vivacidade no olhar, cumprimentou Marco Antônio animadamente e lhe informou sobre como admirava-o. Disse-lhe que sempre fora seu maior fã e que ele sempre fora sua mair inspiração. Quis saber como ele estava e por onde andava. Marco Antônio sentiu-se ainda mais vazio e a intensidade do brilho da felicidade e do talento do pianista, contrastou com a miséria interna de Marco Antônio, produzindo sombras ainda maiores e mais densas no fundo de seu coração. O pianista de pé e cujo nome Marco Antônio ainda ignorava lhe convidou ao palco.

Foi uma noite extremamente animada, como há muito Marco Antônio não se lembrava. Alternadamente, Marco Antônio e seu fã tocaram durante a noite inteira. Todos se divertiram demais. Com o sucesso, o dono do restaurante contratou Marco Antônio para tocar ali pelo resto de sua vida. Infelizmente o jovem pianista, fã de Marco Antônio, cujo nome era Josiel Medeiros, queria viajar para a Iugoslávia, porque era fã de iogurte. Apesar de todos lhe dizerem que só por causa do nome, não significava que o país era especializado em produção de iogurte, o jovem Josiel, apesar de muito habilidoso no piano, era impulsivo, inconsequente e teimoso. O que, na verdade, era um conjunto de grandes habilidades juvenis desde 739,42 antes de Cristo.

Marco Antônio se tornou um homem mais feliz, mas só se realizou completamente quando conseguiu, finalmente, roubar o piano do restaurante que lhe salvara as finanças e a reputação como artista. Mas antes que alguém soubesse do roubo, ele devolveu-o ao lugar de onde o havia retirado. Quando Marco Antônio finalmente morreu, vítima de um enfarto fulminante do dedo mindinho, um recurso da mais recente atualização do software do GrandPiano touch PRSX7 entrou em ação. O banco projetava automaticamente, todas as noites de quinta feira, uma imagem holográfica e super realista do falecido músico. Com seus trejeitos característicos e avidez nos movimentos friamente calculados. E assim, de seu túmulo, ressecado e sorridente, Marco Antônio não ouviu sua música ser tocada por toda a eternidade e permaneceu morto para sempre.