428-DORMIR COM A MULER DO CHEFE ESQUIIMÓ-Choque de cultura
George Amaral é marchand e promotor de exposições de arte. Apesar de muito viajado e de conhecer o mundo inteiro, ainda há lugares recônditos onde, pensa ele, arte e cultura jamais chegarão. Por isso ficou surpreso quando, numa exposição de Vancouver, na costa leste do Canadá, viu esculturas de rara beleza, produzidas por artistas de uma pequena população de esquimós, habitantes de uma região mais ao norte, em terras árticas, num local de difícil acesso.
— Os gurks são um grupo de antigos esquimós, vivendo isolados do mundo. — Explicou-lhe o diretor do Museu de Arte de Vancouver, monsieur LaVille. — Mantém os costumes e a tradição dos povos mais antigos do norte. São hábeis escultores, como você vê nestas peças. E só vendem seus trabalhos para as pessoas que se atrevem a ir até as planícies geladas onde vivem.
Amaral se interessou pelas obras de arte dos gurks.
—Nota-se que eles não têm muitos motivos para se exercitarem. A maioria das esculturas tem como motivo as focas. — Comentou Amaral com o amigo LaVille. — O bicho não é lá tão bonito assim, mas eles conseguem fazer peças maravilhosas. Gostaria de visitar os tais gurks e fazer algumas aquisições. Como poderei chegar até onde moram?
—Eu mesmo estou saindo para lá. Também quero comprar mais esculturas dos gurks. Se quiser, podemos ir juntos.
Viagem combinada, fretaram um avião que os levou até North Plain. Uma confortável van, preparada para longas viagens sobre terreno de eterno gelo, os esperava. O veículo e o motorista que os levaria à aldeia gurk tinham sido previamente contratados pelo eficiente diretor LaVille.
— Jake é ótimo guia. — Explicou LaVille. —Vai ser também nosso intérprete. Os gurks falam uma língua arrevesada, de difícil compreensão. Já viajei com ele em outras ocasiões.
— Vamos sair amanhã ao amanhecer, isto é, pelas duas da madrugada. — Informou Jake. — O tempo está firme e em pouco mais de dez horas estaremos entre os gurks.
Era verão no ártico. Na primeira parte da viagem, a paisagem surpreendeu Amaral, que pensava viajar por campos de eterno branco; pelo contrário, era de um colorido intenso. A tundra cobrindo grandes espaços de cores variadas cedia lugar, aqui e ali, a bosques de abetos, pinheiros e álamos. O caminho, bem marcado, era interrompido por riachos e córregos de águas cristalinas, facilmente transpostas pela potente van.
Durante o percurso, os três homens fizeram camaradagem e muita informação foi passada a Amaral.
— Os esquimós conservam costumes de seus ancestrais com muito desvelo. E um dos costumes mais estranhos para nós é o de oferecer a esposa para dormir com o recém-chegado. — Disse LaVille.
— Como é que é? — Afeito a mulheres, Amaral ficou surpreso e ao mesmo tempo, interessado. — Dormir com a mulher? Que costume legal.
— Não se entusiasme muito. Aliás, se o chefe ou outro esquimó oferecer a mulher para dormir com você, dê uma desculpa aceitável. Uma recusa pura e simples é tida como ofensa. Pode atrapalhar nossa viagem.
— Que desculpa, que nada! Como é que vou recusar um oferecimento desse tipo?
— Acho melhor você inventar alguma coisa. Faça como eu. Diga que é astrônomo e que deve passar a noite observando estrelas; e fica conosco, na van.
— Essa não! Jogo a oportunidade de ficar nos braços de uma mulher, esquimó que seja, para passar a noite com dois marmanjos, aqui na van? Nem pensar!
— Espere e verá. — Foi o comentário de Jake.
Foram muito bem recebidos pelos membros do clã gurk. Amaral nunca tinha visto pessoal tão feio. Todos baixos e gordos, as maçãs do rosto incrivelmente protuberantes, duas fendas estreitas em lugar de olhos, cabelos pretos mais parecidos com cerdas negras e um sorriso fixo nas bocas pequenas. Muitos - a maioria - desdentados.
O chefe era uma exceção: alto, corpulento, nem parecia pertencer à tribo. Seus trajes indicavam a dignidade da liderança: as peles mais trabalhadas e mocassins com detalhes coloridos. Uma tira de couro na cabeça, prendendo uma incrível pena amarela de uns quarenta centímetros, aumentava aparentemente o seu porte.
Apresentou-se sozinho. Os demais membros do clã ficaram a respeitável distância. O intérprete conduziu o diálogo inicial com êxito, pois o chefe logo enfeitou sua cara com um riso aberto.
No meio das conversas preliminares, o Chefe interrompeu o diálogo e, virando-se para seu povo, apontou o dedo para uma mulher, que veio caminhando em passos miúdos, ficando ao seu lado.
Amaral notou que a mulher não era diferente em nada das outras: igualmente baixa, gorda, cara de lua-cheia. Apenas os cabelos compridos a distinguiam do sexo oposto. Ao se aproximar, Amaral sentiu um forte cheiro de óleo de peixe, um bodum quase insuportável, exalando da pequena criatura.
O Chefe falou uma algaravia, apontando para a mulher e para Amaral. Jake foi traduzindo:
— O Chefe está oferecendo....
— Pára, pára! – Interrompeu Amaral. – Pode parar por aí. Fala pro Grande Chefe que, com todo o respeito, eu sou astrônomo. Tenho de passar a noite vendo estrelas.
ANTÔNIO GOBBO – Belo Horizonte, 2/maio/2007
Conto # 428 da Série Milistórias –.