O fim de uma sanidade
Todos as manhãs, antes de subir as escadarias do prédio, eu parava na banca do café e pedia um copo bem cheio. Sentava-me em um dos bancos de pernas compridas, daqueles que normalmente vemos em lanchonetes, e conversava o ordinário com a dona da banca. Depois eu seguia com mais alguns passos e marcava presença na banca dos jornais. Mas apenas lia a manchete principal, a da capa, e saia. Não olhava para ninguém. Subia os lances de escada do prédio e enfim começava a ler papeis.
Tudo era sempre comum. Muito comum, por sinal.
Foi então que num dia desses, enquanto levava o copo amargo à boca, percebi-me olhando para um homem sentado em um dos bancos da praça. Aliás — peço perdão —, tanto a banca do café como a banca dos jornais ficavam nessa praça. O que significa que eu estava a mais ou menos vinte metros do homem. E isso me permitia vê-lo quase que por completo. Se não fosse uma lixeira baixinha, para lixos pequenos, saberia dizer algo até sobre seus sapatos.
Mas confesso que não sei responder o porquê de ter-me fitado naquele sujeito. Normalmente, eu não sou muito atencioso. Diria até que sou bem distraído. E é por isso que me intriga o fato de saber que o homem vestia uma camisa gola polo preta, com, ao que parecia, um pequeno rasgo na manga esquerda e uma mancha, também pequena, perto da gola, indo para as costas. Suas calças eram jeans azul-escuro e estavam, de vista, perfeitas, ao contrário da camisa.
Eram muitos detalhes para um desatento como eu.
Não obstante, no dia seguinte, ali estava eu novamente, bebendo meu café, e ali também estava o homem, no mesmo banco, sendo mais uma vez um alvo. Desta vez sua camisa mudara de cor, era branca, mas continuava sendo polo, e tinha duas listras horizontais nas mangas. Já as calças pareciam as mesmas. E os sapatos — dessa vez eu os vira —, eram pretos, os convencionais.
Naquele dia eu tive a certeza, vinda de não sei onde, de que, no mínimo, havia algo de estranho. Em mim ou no homem. Então deixei o café de lado e fui buscar resposta. Nem me lembro de ter pago à dona da banca. E não me importava mais com a leitura dos papeis.
Primeiro, eu disse "olá", o ordinário, e o homem respondeu da mesma forma, olhando nos meus olhos. Depois me sentei ao seu lado e esperei algo mais. Como o homem não prosseguiu, busquei, eu, um assunto direto.
— Eu te conheço de algum lugar?
— Isso quem tem de responder é você.
— Não. Não conheço. Mas você me conhece?
— Claro.
Intrigou-me.
— De onde?
— Isso importa?
— Bem, creio que sim, não?
— Talvez.
— Como assim, talvez?... Deixa pra lá. Quem é você?
— Eu sou um homem qualquer, desses da praça.
— Desculpe, mas creio que não...
De repente uma voz invadiu a nossa conversa:
— Olá.
Eu respondi com outro olá e o homem se sentou junto a nós.
— Eu conheço vocês de algum lugar? — Perguntou o recém chegado.
— Isso quem tem de responder é você — Disse eu. E depois me estranhei por ter dito.
— Não. Não conheço. Mas vocês me conhecem?
— Não.
— Claro — Respondeu prontamente o primeiro do banco.
E eu segui aquele "claro" sem entender absolutamente nada.
— Ora, eu não o conheço.
— Claro que conhece. Vocês...
— Olá — Mais uma interrupção.
— Olá — Respondemos nós três.
O homem que chegara ameaçou sentar-se e então nos esprememos.
— Eu conheço vocês? — Perguntou.
Eu me levantei apressado e me afastei um pouco. Estava com vários nós na cabeça.
— O que está acontecendo aqui?
Ninguém me respondeu.
— Olá — Outro homem se aproximou. Eu arregalei os olhos e o mirei bem. Ele se acomodou junto aos outros.
— Eu conheço vocês?
— Estou louco.
Sacudi a cabeça, belisquei-me, pisquei fortemente os olhos. Ou eu estava louco ou era tudo um sonho. Para a prova, parei um transeunte que seguia no passeio da praça e o perguntei se ele estava vendo aqueles homens no banco.
— Ora, é obvio que os vejo.
— E você os conhece?
— Claro — E sentou-se.
Não era um sonho.
Eu saí correndo, sem olhar para canto algum, passei pela banca do café, pela banca do jornal e só parei quando sentei-me em minha cadeira, na minha sala, no prédio em frente a praça. Sentei-me aliviado. Estiquei as pernas e estralei os dedos das mãos.
— Nossa, que episódio!
— Não foi legal?
— Quem está ai — Girei 360 graus procurando o dono da voz. Não encontrei.
— Vá à janela e olhe a banca do café.
Comecei relutante mas por fim obedeci. Fui à janela e ergui a persiana. Quando mirei a banca, vi um homem de costas sentado ali, num daqueles bancos altos, bebendo café.
— O que é isso?
— Não diga nada, apenas me descreva o que está acontecendo lá. Será bem divertido.
— Como, divertido? O homem só está bebendo café, ora...Não, ele se levantou. Agora está caminhando para...O que?! Sou eu ali no banco da praça. O homem se sentou. Não pode ser! Também sou eu. Dois. Agora chegou outro. Três. Outro. Quatro. Outro e mais outro. Seis. O que está acontecendo?
— Não é legal? Vá, descreva.
— O primeiro que chegou se levantou e agora está correndo.
— Para onde?
— Passou pela banca do café. Agora pela banca dos jornais...Não!
Quando eu me virei, o meu segundo eu já estava na minha cadeira. Depois de um suspiro de alívio, esticou as pernas e estralou os dedos das mãos.
— Nossa, que episódio! — Ele disse.
— Não foi legal?
O meu segundo eu girou a cadeira numa volta completa, mas também não encontrou o dono da voz.
— Vá à janela e olhe a banca do café.
E eu implorei. Implorei de joelhos para não acontecer novamente. Mas tudo se repetiu sem nenhum pudor.