Meu avô é uma peça de xadrez
<<Espero que gostem........>>
Meu avô foi quem me criou. Mas não da maneira que, talvez, você tenha imaginado. Digo literalmente. Porque ele nunca teve um neto e um dia quis ter um. Então, ele me fez. Em sua cabeça, claro. E depois me passou para o papel.
Ele me criou para ouvir suas histórias de batalha.
— Por que o senhor me fez, vô?
— Para ouvir minhas histórias de batalha.
Viram?
Ele nunca me escondeu essa verdade. Para ele não fora egoísmo. E nem para mim. Para muitos, talvez, seria. Mas, para mim não. E nem para ele.
Então, vivo bem. Eu e também ele. Porque neto é bom — e avô também. E só neto ouve o avô — e só o avô tem boas histórias para contar. Por isso nos damos tão bem.
— Qual história o senhor vai me contar hoje, vô?
— Antes posso te contar um segredo?
Eu estranhei. Porque ele nunca contava segredos. Mas, eu disse que sim. Que queria ouvir.
— Na verdade esse segredo será a história de hoje. Eu o guardei por um bom tempo. Mas enfim é chegada a hora — Fez um bocado de suspense e por fim disse: — Eu sou uma peça de xadrez.
Naturalmente, me calei — o que eu poderia fazer senão isso? E por vinte e dois segundos fiquei com um apagão na mente. Senti-me morto esse tempo — aliás, não é possível nunca nos sentirmos mortos. Então, entenda que fiquei paralisado. Sim, paralisado é cabível.
E, então, meu avô me chamou. Somente na terceira vez eu respondi.
— Como assim, xadrez?
Meu avô disse que não havia mistério e que ele apenas o era.
— Mas não pode ser...
— Muitas coisas não podem, filho. Mas mesmo assim são. Aí está a ironia. E algumas ironias não são ruins.
— Mas, como pode uma peça...um objeto falar, escrever, pensar?
— A única dificuldade de uma peça de xadrez está nos campos de batalha. Fora dele não há nada difícil. E nem impossível.
— Então é por isso que as histórias eram sempre sobre guerras e batalhas?
— Creio que sim. Mas isso não significa que eu não tenha outras histórias. Outras que não vermelhas.
— Mas eu gosto delas. Eu sempre gostei.
Eu sempre pensei que meu avô fora um grande homem de guerra. E que suas histórias eram de quando havia servido o exercício. De quando havia servido como um homem comum. E não como uma peça de xadrez. Aliás, eu nunca havia sequer imaginado essa hipótese. Nunquinha.
Mas, depois que ele revelou o segredo, bem, pensei profundamente a respeito. E consegui chegar num ponto curioso: como eu pude distinguir um homem de uma peça? Como eu pude pensar que meu avô fosse um homem? Como fiz isso se sou apenas uma criação? Se não tenho parâmetros?
Meu avô me disse que não há diferença entre um homem e uma peça de xadrez. E que nas mãos de qualquer coisa uma coisa qualquer pode se formar. E que, também, uma coisa qualquer pode saber tudo ou saber nada. Depende da mão.
Sim, eu também fiquei confuso. E então ele me explicou.
— Quando vou à batalha, nunca vou sozinho. Mas também não vou somente com as outras peças. Há uma mão que nos guia. A mão de um homem. E é sempre essa mão que nos faz ser uma peça de xadrez. Talvez, eu já tenha, sim, nascido um bispo. Aliás, eu sou um bispo; às vezes de casas negras e às vezes de casas brancas. Entretanto, a mão sempre me muda, transforma, faz eu vencer...e, às vezes, perder.
— Pode me explicar melhor?
— Simples. Quando estou na caixa, guardado, sinto-me um deus. De fato continuo sendo um bispo, mas sou um bispo eterno, que não tem fim. Quando a mão me toca, imediatamente ganho um destino, ganho vida. Entretanto, isso não significa que antes da mão eu já não vivia. Não. Como já disse, antes da mão eu sou um deus. Assim como a própria mão o é. Porque quem cria um destino a alguém, quem cria alguém, só pode ser um deus. Ou alguém semelhante a um. Se a mão me cria, o homem que a tem é alguém grande e poderoso. Se eu te criei, só posso ser a mesma coisa. Não é tão difícil de entender, é?
— Agora, talvez, não.
— Veja, certa vez eu me perguntei: se a mão me faz uma peça de xadrez, poderia eu, em algum momento, também fazer uma? Ou fazer um homem? Essa foi minha inspiração para criar o meu neto, você. E de fato eu também queria um para que me ouvisse.
— Mas eu tenho fim, vô?
— Enquanto eu acreditar em você, não. E é assim comigo também. Eu sou eterno porque a mão sempre acredita que eu sou uma peça. Enquanto assim for, nós nunca temos fim.
— Só tenho mais uma pergunta: o que eu sou? Também sou uma peça de xadrez? Qual?
Silêncio.
Eu fiz essa pergunta ao meu avô há três anos. E o silêncio existe até hoje.
Meu avô, que me disse ser eterno, disse ser um deus, de repente, me deixou. Parou de me chamar e me contar histórias. Parou de ser o meu avô, que também era o meu amigo.
Sumiu? Não sei.
Foi-se embora? Não sei.
Talvez, isso faça parte de um plano dele. Talvez ele tenha planejado me contar o tal segredo e depois disso se calar. É possível.
Mas, também é triste. Eu gostava tanto dele!
E o que eu aprendi com ele? Para mim é estranho. A última história que ouvi dele, hoje, me faz pensar na minha própria história. " Não há diferença entre um homem e uma peça de xadrez". "Nas mãos de qualquer coisa uma coisa qualquer pode se formar". "Uma coisa qualquer pode saber tudo ou saber nada. Depende da mão.".
Agora entendo. Eu sei o que é ser homem porque o meu avô o quis assim. E pelo mesmo motivo também sei o que é ser uma peça de xadrez. E não há diferença entre um e outro porque ambos podem criar o que quiserem. Ambos são deuses e têm mãos poderosas.
O engraçado é que agora a ironia me alcançou. A ironia a qual meu avô se referiu há muito, agora está perante mim. Por não ser nada mas por saber o que é ser homem e peça, a minha ironia é poder ser o que eu quiser. Não ganhei um destino do meu avô. Não. Ganhei o meu próprio destino. Posso ser o que eu quiser. Posso ser deus, posso ser uma peça, e também posso continuar não sendo nada e ao mesmo tempo sendo tudo.
Entretanto, já me decidi. Eu serei a mão que move as peças. Serei a mão que cria as peças. Serei a mão que tudo pode fazer; uma mão poderosa. Porque quero muito trazer meu avô para perto de mim novamente.