389-ZE PREGUIÇA- Morreu por preguiça

Não conheci José Justino, mais conhecido por Zé Preguiça e também pro Zepré. O que sei foi por ouvir dizer, principalmente no velório do rapaz. Uma judiação, ver um jovem tão forte, estendido no caixão. Parecia estar dormindo.

Dormindo... Acho que passou a maior parte da breve vida entre cochilos dormidas. Segundo me contaram, foi preguiçoso desde o tempo em que passou na barriga da mãe. Nasceu dez meses depois do casamento de Vivalda com Lotário. Talvez a noiva não estivesse grávida na ocasião do casamento, tendo sido apenas um expediente usado para segurar Lotário – o que jamais conseguiria se deixasse por conta do noivo.

Para vir à luz demorou doze horas, contadas a partir das primeiras dores, ao amanhecer, até meia-noite. O parto, embora demorado, não fora difícil. A demora parece ter influenciado no desenvolvimento do menino.

Cresceu sempre demorado. Sempre atrasado. Não se tratava de lerdeza, pois tinha lá seu nível de inteligência. Mas a preguiça não o abandonava nunca.

— Deve ser as bichas. — Foi o diagnóstico de uma curandeira. — Dá este purgante pra ele, mode purgá as lumbriga, que ele melhora.

Qual o quê! Que tinha lombrigas ficou constatado, quando chamou a mãe pra ver o monte de cobrinhas que tinha evacuado atrás do paiol. Mas nem por isso passou a preguiça.

Na infância, era demais. Tinha preguiça para fazer tudo, até para dormir.

— Menino, vai lavá os pés pra durmir.

Embromava até a última hora, e em muitas noites foi dormir com os pés sujos. Pés e tudo o mais.

Tinha uma desculpa para tudo o que tivesse de fazer. Ou um pretexto para adiar.

Na escola, foi um problema.

— Ele não é burro, não, dona Vivalda. — A professora tentava explicar a repetência do Zé. — Mas é preguiçoso demais.

Terminado o grupo escolar, ficou em casa, com preguiça de estudar mais. Na fazenda, nada fazia, era um estorvo.

— Zé, vê se faz alguma coisa. — A mãe ordenava, de maneira complacente. — Se você ficar nessa inhana,vou contar pro seu pai, quando ele chegar de viagem.

Como o pai, um vira-mundo, só aparecia de vez em quando na fazenda, o garoto foi crescendo sem um corretivo paterno. Só preguiça e mais preguiça.

Chegando a época de servir o exército, teve preguiça de se apresentar ao Tiro de Guerra. No ano seguinte, foi chamado na sede da Região Militar, onde, sem mais tardança, foi alistado como “refratário”. Entre os companheiros de caserna, destacou-se pela preguiça e tomou o apelido de Zépré — pela preguiça e pela incapacidade de estar com os demais, a tempo e a hora, como exigia o sargento.

Saiu do exército com o competente documento, no ano seguinte. Não havia como adestrá-lo nem agilizar seu modo de ser, de eterno preguiçoso.

— Melhor lá fora do que aqui dentro. — O comandante assinou de bom grado a baixa do Zé Pré das fileiras do exército. — Vá ser preguiçoso assim na casa da mãe Joana.

De volta ao lar, à fazenda, nada o animava, nada o tirava da preguiça.

Não teve namorada. Sequer perseguiu alguma das serviçais da casa, caboclinhas brejeiras. A preguiça não permitia vontades e desejos que exigissem esforço. .

Quando o pai voltou de suas viagens, doente, não teve coragem de ajudar a mãe no cuidado do enfermo. Nem percebeu as manobras dela para abreviar os dias do velho.

Acompanhou, com olhos lânguidos, a substituição, na vida da mãe e na fazenda, do pai pelo capataz. Não se deu conta, por pura preguiça de raciocinar, das intenções do administrador, quando este tomou posse definitiva dos bens do falecido, inclusive da viúva.

— O Zépré precisa tomar jeito. — Ouviu, sem querer, as palavras do novo chefe da casa. — Tá homem feito, passou da hora de sair de casa e ter sua vida.

A mãe não disse nem que sim, nem que não. O filho era, de fato, um estorvo, mas...fazer o quê?

Um dia, o capataz chama Zé num canto e lhe propõe.

— Olha, Zé, tem um jeito de cê sair dessa vida sonsa. Já arranjei procê um lugar pra morar na cidade. Muito melhor do que aqui na fazenda.

— Quero não. Mior ficar aqui.

— Que nada, bobo. Você vai pra casa da Joana Flor. Ela tá doida pra ficar cum’ocê. E te dou quinhentos mil réis pra você gastar com ela.

Sem disposição para discutir, Zé Preguiça aceita a sugestão. Pega uma trouxa com roupas, preparada pela mãe, e sai. Com uma preguiça sem tamanho.

Ao chegar no Córrego da Paca Cega, uma sombra acolhedora de imenso pau d’óleo foi o bastante para que a preguiça tomasse conta de Zé Pré. Deitou-se, fazendo da trouxa travesseiro para um cochilo.

— Ahhh...que sombrinha boa...

Chegou até a ouvir o chocalhar de guizos aos seus pés. Com preguiça de verificar o que era, virou-se para o outro lado. Foi a sua última preguiça em vida.

Velório de gente humilde é muito triste. O de Zé Preguiça não foi diferente. Poucas pessoas permaneceram ao lado do caixão. Nem mesmo a mãe ficou todo o tempo velando o filho.

O capataz da fazenda apareceu quando trouxe o corpo, encomendou mas flores e uma coroa, que fiz com muito carinho. No enterro, chegou a tempo de tomar a viúva pelo braço e arrasta-la para fora do cemitério..

Foi enterrado numa tumba ao lado do pai. O preguiço ao lado do vira-mundo.

O rapaz não merecia estar morto. Até hoje, passando muitos anos daquele funeral, me pergunto como pode uma pessoa não encontrar um sentido para a vida. Um motivo para viver.

Enfim, para este encontro final, deve ter chegado na hora que lhe fora marcada.

ANTÔNIO GOBBO – BH, 21/fev.2006

Conto # 389 da Série Milistórias -

Adaptado em 18.02.2008 para Volume 8-Senhora das Coroas

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/08/2014
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